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    Luli Radfahrer

    Seu corpo não é uma máquina

    01/12/2015 02h03

    A compra do fabricante do Botox pelo criador do Viagra representa muito mais do que uma simples fusão de grandes empresas. Os produtos mais populares daquela que se tornará a maior companhia farmacêutica do mundo deixam bastante clara uma característica típica dos tempos contemporâneos: a busca por tratar o corpo como se fosse máquina, otimizando-o sempre que possível.

    A indústria que se alimenta dessa busca por uma perfeição inatingível é tão grande que faz os cerca de US$ 160 bilhões da transação que uniu as duas empresas parecerem uns caraminguás. Ela envolve segmentos tão diversos quanto ginástica, cosmética, publicidade, comunicação, moda, cirurgia plástica, alimentação, medicamentos, próteses e vitaminas, todos na busca de manutenção e atualização da máquina humana para sua versão 2.0.

    É inegável que há um componente virtual na relação entre pessoas "aumentadas" por Viagra, Botox e tantos outros. Eles parecem realizar uma espécie de performance, uma dança inspirada, desvirtuada e adulterada por versões diversas de pornografia, em que nem o corpo nem a ereção pertencem a seus usuários.

    Essa virtualidade agora ganha um novo componente com as tecnologias vestíveis e sensores variados, o que cria um estranho paradoxo: à medida que as máquinas parecem estar cada vez mais vivas e autênticas, aqueles que antigamente as controlavam estão hoje cada vez mais mecânicos. E tratam seus corpos de maneira funcional, consumindo combustíveis aditivados com energéticos e mixes, para depois procurar purgá-los com dietas milagrosas e sucos "detox".

    Adotar a metáfora de máquinas e sistemas nem sempre foi uma ideia ruim. Muito pelo contrário: no passado, ela contribuiu para reduzir boa parte do misticismo que acompanhava o corpo humano e sua "alma" ou "aura", o que levou a um grande progresso e deu a base para a ciência moderna.

    Na Alemanha do final do século 19 era comum ouvir propostas para adaptar os músculos à nova tecnologia. O termo caloria, surgido no período, é utilizado para demonstrar a eficiência do motor humano em queimar seu combustível. Quando o relógio se popularizou, muitos imaginavam o funcionamento do cérebro "como um relógio", metáfora que até hoje sobrevive nos processos digestivos.

    Quando surgiu o computador, não faltaram comparações biológicas para explicar o "cérebro eletrônico", cujas versões de hardware tinham "gerações" e o armazenamento interno era feito em diferentes "memórias". Hoje a metáfora se inverteu. É muito comum ouvir quem se refira ao cérebro como um tipo de computador, cujos processos, por mais que partam de estruturas completamente diferentes, sejam parecidos.

    Mas a evolução do pensamento para além do domínio mágico criou uma divisão curiosa: desde Descartes que se acostumou a considerar o indivíduo partido entre seu corpo e "mente", como se o fardo mortal fosse uma simples máquina a serviço de uma mente soberana que o pilotaria.

    A neurociência, no entanto, prova que o mecanismo humano é muito mais complexo do que sugere a metáfora. Sua natureza é tão diferente que nem poderia ser considerada um tipo de máquina. O corpo não é separado, nem compatível com atualizações tecnológicas. Sua eficácia é impressionante, mas está longe de ser perfeita, o que é compensado muitas vezes por sua extrema flexibilidade e variedade.

    Acima de tudo o corpo humano não é resultado de design ou projeto, mas sim formatado por uma quantidade gigantesca de mudanças infinitesimais ao longo de muito tempo. Seu principal objetivo, é sempre bom lembrar, é a reprodução e perpetuação da espécie, não a longevidade ou a juventude.

    Comparações do corpo com a máquina e vice-versa podem reduzir a complexidade, mas correm o risco de causar uma grande confusão ou limitar o raciocínio. Um corpo é... um corpo, e só pode ser comparado com outra estrutura biológica viva. Metáforas tecnológicas são tão válidas para explicá-los quanto ilustrar uma orquídea com argumentos de basalto.

    No entanto a metáfora da máquina é tão usada que poucos pensam nela como um simplificador. Fora de contexto, o corpo se desintegra e se torna um conjunto de químicos, neurotransmissores e impulsos elétricos, sem propósito nem finalidade.

    Dados e métricas em demasia e fora de contexto geram ansiedade. O indivíduo quantificado pode facilmente analisar seus valores isolados em busca de padrões e anomalias. É curioso pensar que, justamente em uma época de grande saúde e longevidade muitos se dediquem a buscar doenças e objetivos inatingíveis, como hipocondríacos. Viciados em diagnósticos e obcecados por números, muitos não tem a serenidade para lidar emocionalmente com tanta informação e comparação.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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