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    Luli Radfahrer

    ... E a TV continua forte

    15/12/2015 11h00

    Críticos apressados e polêmicos digitais de plantão adoram prever o fim da TV. A princípio seria fácil concordar com eles, devido ao surgimento de tantas tecnologias de consumo eletrônico caseiro a competir pela frágil atenção de seus pobres usuários.

    No entanto, seja via web, smartphones, tablets ou consoles, o vídeo reina soberano. E, com ele, Hollywood e as grandes produtoras de TV. Mesmo com o avanço da pirataria e o barateamento dos custos das cadeias de produção e distribuição, os estúdios profissionais continuam responsáveis pela concentração da audiência. Esteja ela nas histórias fasciculadas de "Breaking Bad", "Dexter" ou da novela das 8; esteja ela nos programas de auditório, jogos de futebol ou reality shows como "Big Brother", "MasterChef"; ou em boa parte do circo surreal em que se transformou o noticiário nacional, a audiência está na TV. Os poucos conteúdos de entretenimento discutidos nas redes sociais que não vieram de sua telinha costumam ser provenientes da telona do cinema.

    A forma tradicional, passiva, de se reagir a esse conteúdo tem sido substituída por outra, mais participativa, embora não menos espetacular. Se o vídeo nos tempos de rede foi substituído por alguma coisa, esta coisa não está nos comentários e nós da rede, mas em plataformas com ainda mais vídeo. Mesmo que algumas delas, como Torrent ou o popular Popcorn Time, sejam consumidas ilegalmente.

    Acredito que os que defendem o fim da TV analisam as métricas erradas. O espaço das mídias se comporta como um ônibus cheio: à medida que novos passageiros entram, os presentes arranjam uma forma de se acomodar e redistribuir o espaço restante. Poucos, muito poucos, deixam o comboio.

    Já faz algum tempo que a televisão deixou de ser um simples dispositivo para se tornar uma experiência integrante e fundamental para a vida doméstica. Como ela, o "horário nobre" se tornou mais um momento de expectativa por entretenimento envolvente do que um período do dia. O intercâmbio e vínculo emocional que executivos e diretores desenvolvem com seus públicos nos cerca de 80 anos de vida da TV é intenso e não pode ser desconsiderado, pouco importa o local, horário e formato de seu consumo.

    Como boa parte do que se diz respeito à TV, muito do pânico que se fofoca a respeito de seu eventual declínio é baseado em palpite infundado. Basta um pequeno escrutínio dos principais assuntos debatidos nas mídias sociais e se verá que, salvo poucos eventos genuinamente surgidos por ali, como o movimento #meuamigosecreto, boa parte do que se discute por lá é oriundo da programação da TV. Nem que esta TV esteja no Netflix.

    Mas isso não quer dizer que a velha caixa preta esteja com o futuro garantido, muito pelo contrário. Por mais que a audiência do meio esteja garantida por um bom tempo, seu formato de produção e distribuição de conteúdo precisa passar por uma grande transformação.

    A começar pelos salários dos artistas. Se hoje qualquer empresa é capaz de mensurar com alguma precisão o retorno sobre o investimento nos caraminguás que se paga a um estagiário, por que se paga tanto a determinadas celebridades? Por tradição? Por medo de perder para a concorrência? E será que montantes do porte de R$ 300 mil por mês são verdadeiramente abusivos? Ou são verdadeiras pechinchas, quando levado em conta o faturamento trazido pelo profissional? Antigamente tal pergunta seria um mistério. Hoje não é mais.

    A grande transformação da TV está por trás da tela. Graças a novos serviços de distribuição de conteúdo, como o Netflix, iTunes, Amazon (e outros nomes não tão conhecidos por aqui, como Hulu ou Crackle), novos hábitos de consumo compulsivo de TV, em que séries completas de 12 ou mais horas sejam acompanhadas em um único fim de semana, fazem com que o hábito de se reunir a família em torno do sofá da sala, no melhor estilo dos Simpsons, seja tão arcaico quanto acompanhar as aventuras de Rin-Tin-Tin nos cinemas de bairro em 1950.

    A dinâmica social é outra mudança considerável. TV e cinema sempre foram pontos em comum para intercâmbio social entre desconhecidos. É mais confortável falar de novela do que debater política ou futebol, e são poucos os que se intimidam ao defender suas preferências a respeito de "Jornada nas Estrelas" versus "Guerra nas Estrelas", ou mesmo ao defender que o Kevin Spacey de "Beleza Americana" é melhor do que o de "House of Cards". O fenômeno que os publicitários da moda chamam de "segunda tela" nada mais é do que a enorme vontade de compartilhar suas opiniões a respeito de um conteúdo tão popular e abrangente.

    Essa predileção pode ser vista toda vez que acontece um evento muito popular, como a Copa do Mundo, a abertura da Olimpíada ou a entrega do Oscar. Praticamente ninguém está interessado na sua reprise, todos precisam assistir ao momento ao vivo, sob prejuízo social de não ter o que dizer quando encontrar os amigos.

    Mais do que roubar a audiência da TV, smartphones e tablets deram às emissoras maiores oportunidades de distribuição de conteúdo, interrompido, comentado, compartilhado, multiplataforma, livre da "grade" de programação, em que nenhuma tela pode ser considerada primária. A TV, se fizer alguns ajustes em sua estrutura, tende a ter um futuro glorioso, mesmo em uma época que programas e atores se tornaram maiores e mais importantes do que as produtoras ou canais que os abrigam.

    Até mesmo a inevitável pirataria é, em alguns casos, até benéfica. Não são poucos os grandes sucessos de público que tiveram sua pesquisa de mercado (como "House of Cards") ou divulgação (como "Tropa de Elite") baseada em serviços de busca e download ilegal.

    A TV passa por uma evolução, não uma revolução. Por mais que as formas de se interagir com ela devam se diversificar, seu conteúdo não tende a ser muito diferente do que era nos seus primórdios.
    Seu futuro não deve estar em algo tão pobre quanto aplicativos, mas na melhoria de suas funcionalidades. Já está na hora do velho controle remoto ser substituído por um sistema de busca com reconhecimento de voz, identificação de preferências e estados de espírito para entender frases complexas como "TV, estou cansado. Me manda um pipoca romântico, bobinho, para eu relaxar e dormir. Tem algo com o Tom Hanks que eu não tenha visto?"

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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