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    Luli Radfahrer

    Retrospectivas

    29/12/2015 11h07

    No mundo aparentemente bucólico e gigantesco em que se vivia antes de que Google, Facebook, Twitter e congêneres se tornassem as principais fontes de notícias, essa época de transição de ano era marcada pelas retrospectivas.

    Na TV, jornais e revistas, repórteres empilhavam estatísticas e linhas do tempo, cuidadosamente analisadas por especialistas de todas as áreas. Já que o país e boa parte do mundo ocidental entravam em uma espécie de recesso, pouco de novo havia para ser efetivamente noticiado.

    Nada melhor do que aproveitar a efeméride para preencher páginas e minutos com análises do período que passou e longas reflexões, não necessariamente ligadas a fatos cotidianos.

    Alguns céticos acreditavam que tal pauta não passava de enrolação. Nem sempre dava para negar-lhes a razão, principalmente quando a reportagem de fim de ano não passava de uma compilação de fatos e dados. Mas até mesmo nesses casos, o simples relato de fatos acontecidos em um janeiro distante ajudavam a meditar a respeito de tudo o que ocorreu nos últimos meses e, no processo, imaginar cenários futuros.

    Veículos mais tradicionais, como a revista "Economist" inglesa, deixavam clara essa intenção ao trocar a retrospectiva pela perspectiva e publicar sua já clássica edição especial em que faz projeções para o ano que está por vir.

    A passagem do ano, como um aniversário, é mais importante pela reflexão a fazer a respeito do período que se foi do que pela efeméride. O planeta continua em seu movimento de translação em volta do Sol, indiferente às criaturas impertinentes que transitam pela sua crosta.

    A "virada" do ano é mais uma oportunidade para a mudança do que um dia especial, e carrega consigo a única vantagem de ter muita gente reunida, disposta a entrar em um ritual de renovação.

    Das extravagâncias gastronômicas do Natal às resoluções de ano novo, passando por shoppings, estradas e hotéis lotados até que a fatura do cartão de crédito se junte a impostos e mensalidades para trazer de volta a tão cruel realidade, pouco de relevante acontece nessas duas semanas. Como há pouco de novo a assimilar, pode ser uma boa época para digerir o que foi absorvido sem julgamento.

    Boa parte do estresse cotidiano vem da incompreensão do contexto em que novos fatos, tecnologias, produtos e serviços aparecem. Em um ambiente cada vez mais integrado, conectado e interdependente, retrospectivas podem ajudar a identificar padrões e colocar cada novidade em perspectiva.

    Elas ajudam a analisar com calma e distanciamento alguns dos eventos mais importantes ocorridos e, no processo, atribuir significado a eles. Ao tirar uma pausa para compreender o contexto em seu cenário maior, é possível estabelecer uma opinião mais fundamentada, reflexiva, menos imediata ou intempestiva a respeito de cada tema.

    Enquanto notícias mostram o mundo exterior, retrospectivas abrem uma janela para o mundo interior. São uma forma delicada e secular de se olhar para o passado sem vieses místicos ou dogmáticos, e podem até ser inspiradoras para se pensar em como tocar a vida em diante.

    Neste ano especialmente negativo, a importância de uma retrospectiva é fundamental. Ela ajuda a compreender o mundo apavorante de atentados terroristas, tragédias climáticas, empresas corruptas e mal-administradas e tecnologias inúteis.

    E pode ajudar para que 2015 entre para a história como um grande despertador. Um ano muito mais importante do que poderia sugerir o centenário do nascimento de Frank Sinatra, Édith Piaf e até mesmo da Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein.

    No entanto essas retrospectivas vem sendo substituídas por compilações inúteis, artificiais, que devolvem para cada usuário da rede um pouco mais daquilo que sempre buscou. Mídias sociais, mecanismos de busca e serviços de comércio eletrônico combatem qualquer tentativa reflexão usando uma estratégia de marketing de recomendação, caracterizada por bombardeio de novidades irrefletidas.

    Em nome de maior "conveniência" para seus usuários, as grandes empresas da rede trocam o espaço para a análise de novos assuntos, que poderiam ser indigestos e gerar questionamentos a respeito do modo de vida, por mais dados e informações que reforçam o modo de pensar de seus usuários.

    Agem assim como verdadeiros opiáceos informativos contemporâneos, restringindo a visão de mundo à medida que aumentam a dependência.

    No mundo segundo o Google, o lançamento do novo episódio da franquia "Star Wars" é cerca de 15 vezes mais importante do que a descoberta de água em Marte. A Copa do Mundo de Rugby, quase 20 vezes mais importante do que o escândalo de emissões da Volkswagen.

    A morte do leão Cecil, maior do que a crise dos refugiados sírios, do que os debates a respeito do clima e do que o acordo nuclear dos EUA com o Irã, perdendo por pouco para o desabamento da economia grega.

    Com tanta coisa importante a se lembrar, ele traz de volta a "polêmica" discussão a respeito das cores de determinado vestido, e por pouco não ressuscita a foto de Kim Kardashian que teria "quebrado a internet".

    No Facebook, a retrospectiva consegue ter escopo ainda mais limitado. Ela é restrita a quem, para a empresa, realmente importa: você. E mais ninguém. Ao fazer compilações de fotos e frases populares que marcaram o ano de seus usuários, a rede social os estimula a se comportarem para que sejam aceitos e presentes, não questionando o mundo além de seus umbigos.

    As grandes empresas de conteúdo "social" da rede não são jornais, escolas, instituições ou partidos políticos. Sua função não é informar, educar ou promover a reflexão, mas entreter. Entretidos, seus usuários estão confortáveis demais para demandar qualquer mudança. A data que poderia ser transformadora é transformada em mais um réveillon na "Ilha de Caras".

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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