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    Luli Radfahrer

    Curadores por todo lado

    05/01/2016 02h00

    Vivemos uma época de hiperinflação estética. Todos chafurdam diariamente no imenso volume de propostas artísticas oferecidas pela rede. É preciso escolher as músicas a ouvir, as roupas a vestir, o cardápio do restaurante etc.

    Nas variadas mídias sociais, é preciso refletir a respeito de que comentários "pega bem" curtir, em quais links se deve clicar, que imagens e fotografias para publicar no perfil, que meme não pode ser ignorado. Depois de um longo dia, para descansar a cabeça, muitos apelam para os vídeos do YouTube ou Netflix, inseguros em saber se, dentre tantas opções, fizeram a escolha certa.

    Mas as alternativas não são, em sua maioria, tão diferentes. Pesquisas de mercado e análises de grandes bases de dados criam ambientes cada vez mais padronizados, que restringem as opções apenas àquelas que se provam comercialmente viáveis.

    Muitas das experiências apresentadas como vanguardas acabam sendo mais repetitivas do que revolucionárias. A web, os aplicativos e os gadgets de hoje, apesar de muito mais potentes do que os produtos e serviços que lhes deram origem, são paradoxalmente uniformes e previsíveis.

    Na tentativa de apresentar uma reação ao mundo padronizado e à obrigação de tomar decisões, muitas empresas buscam proporcionar experiências "originais" em cafés, galerias, festas, lojas, brechós, cervejarias ou restaurantes típicos.

    Mas o que é apresentado como "autêntico" acaba por ser tão medido e manufaturado que deixa de sê-lo. Uma barbearia hipster em Araçatuba bebe das mesmas referências de uma em Beirute, ambas influenciadas pelo que a revista de decoração inglesa "descobriu" em Bruxelas.

    Para reagir às ditaduras do estilo, a palavra da moda é uma tal "curadoria". Antigamente reservada a museus e instalações artísticas, ela é, hoje, aplicada até para a escolha de transporte de carga.

    A origem do termo é o latim "cura", que quer dizer "se interessar, cuidar". É o mesmo que dá origem à palavra "curiosidade". O curador, a princípio, nada mais é do que alguém extremamente interessado em um tema, capaz de passar todo o tempo que tem disponível a estudá-lo. Ao longo dos anos, o conhecimento acumulado por esse nerd artístico acaba por qualificá-lo para atribuir valor e julgar o conteúdo que avalia.

    Precursores dos museus, os "gabinetes de curiosidades" eram coleções privadas, razoavelmente confusas e empilhadas, raramente catalogadas. Não havia padronização. Cada organizador imaginava a exposição de seus itens à sua própria imagem, normalmente pedante, conservadora e burocrática.

    Foi preciso um grande esforço institucional, reforçado por doações e pilhagem, para que os museus passassem a ter a cara mais impessoal e didática de hoje. Seus curadores já não têm o controle absoluto que tinham sobre suas coleções, mas ninguém é doido de mexer com eles.

    A internet, gabinete de curiosidades digitais por excelência, dispõe suas cópias digitais para que acumuladores de todos os tipos as empilhem, classifiquem e atribuam a elas uma espécie de ordem, sendo responsáveis tanto pela compilação quanto pela geração de conhecimento.

    Esses novos curadores agem como facilitadores, agentes, embaixadores, organizadores, expositores e provocadores do conteúdo que agregam, buscando criar sua própria forma de expressão a partir da expressão alheia.

    Se nas cidades europeias dos séculos 16 e 17 os gabinetes de curiosidades eram considerados uma excentricidade praticada pelos poucos que tinham os meios e interesse para tal, hoje esse comportamento é compulsório. Na sociedade digital contemporânea, a ostentação não se dá mais pelo poder de compra do indivíduo, mas por sua capacidade de exprimir uma personalidade singular e gostos individuais particulares.

    No mundo padronizado das mídias sociais, a diferenciação do grupo e o estabelecimento da individualidade parecem ter se transformado em valores essenciais. Cada um morre de medo de ser igual aos outros e busca sua diferenciação a qualquer custo. Nessas condições, o autorretrato deixa de ser uma reflexão e se transforma em uma forma de marketing de cada indivíduo, que procura através de suas selfies, memes e frases de efeito, a aprovação do grupo.

    É uma situação ambígua, para se dizer o mínimo. O mesmo narcisismo de massa que se vê em tanta exposição parece estar sempre acompanhado de uma baixíssima autoestima e uma gigantesca insegurança. Cada declaração pública parece depender da validação do outro, e seu autor parece estar preparado para voltar atrás ou apelar para a autocensura caso desagrade.

    A curadoria compulsória, automática ou terceirizada, parece criar o contrário do que propôs: um espetáculo sob demanda, em que cada participante leva consigo a responsabilidade pela seleção, avaliação e comentário. Situação agravada pelo fato de as mídias sociais não permitirem a ninguém que declare sua ignorância a respeito de qualquer assunto.

    Como não é possível se interessar seriamente a ponto de se tornar especialista em tanta coisa em tão pouco tempo, sobram bobagens e palpites infundados apresentados como verdades pétreas. Em uma rede cuja maioria do conteúdo é publicada por experts autoproclamados, o único resultado previsível é que todos acabem por saber cada vez menos a respeito do que realmente deveria importar.

    Agora que todos parecem capazes de se exprimir e manifestar suas diferenças, talvez seja o momento adequado para experimentar a manifestação de semelhanças. Uma ideia não precisa ser nova ou inédita para ser boa. Basta que seja cultivada o suficiente.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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