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    Luli Radfahrer

    O mundo digital é 'kitsch'

    19/01/2016 02h00

    Já faz algum tempo que a ideia publicitária de "experiência" sucedeu a concepção de qualidade nas matérias-primas, produtos e serviços. O consumidor ávido por design quer novos gadgets, jogos, cosméticos, viagens e cirurgias estéticas o tempo todo. Se não durarem, paciência.

    Para se manterem desejadas e renovadas, as marcas buscam criar novos estilos com uma velocidade inspirada no mundo da moda. Hoje não basta mais lançar produtos de qualidade técnica. É preciso ser "tendência", lançar regularmente novas linhas –e apresentá-las como coleções.

    Isso demanda um novo tipo de consumidor. Egocêntrico e individualista, ele deve privilegiar a originalidade e o divertimento acima de qualquer justificativa técnica, patrimonial ou essencial. Muitos acreditam manifestar, dessa forma, sua independência. Mas a liberdade é parecida com a de um pós-adolescente, que mesmo sem as responsabilidades ou as preocupações do adulto, demanda ser tratado como tal.

    As vontades dos novos reizinhos estão refletidas em suas atitudes. O antigo ideal de salário e carreira foi substituído pelo desejo de se exprimir, criar, fazer coisas estimulantes que a atividade profissional não permite. Um número cada vez maior de artistas autointitulados quer exercer uma atividade criativa paralela a seu trabalho, consciente de que a celebridade a atingir por meio dela é muito mais importante e necessária para sua autoafirmação do que qualquer habilidade ou talento que demonstre no conjunto da obra.

    A nova ordem cultural em um ambiente de muitas estrelas para pouca plateia é dominada pela lógica do espetáculo e do excesso, e marcada pela mistura de gêneros e interpretações. O conteúdo é consumido sob demanda, e no processo transforma seus espectadores em editores. A fabricação e a difusão de imagens é hoje direito e dever de cada um, sujeita à personalidade que pretende ver identificada e admirada pelos outros.

    Essa forma de narcisismo de massa também se reflete na seleção do que é considerado valioso. O gosto pessoal, manifestação de cultura e erudição, se tornou mais importante do que qualquer hierarquia, a ponto de toda classificação "oficial" estar sujeita a provas e contestação de seu mérito.

    Quando todas as opiniões se tornam legítimas, nenhum critério pode ser considerado definitivo. Sem referências, cada um escolhe e manifesta a sua opinião sobre o que considera familiar.

    É o ambiente perfeito para a proliferação do "kitsch". O termo, derivado do alemão, surgiu para classificar objetos que imitam a arte mas são produzidos em massa, na tentativa de se apropriar de símbolos populares. Surgido como uma proposta artística fácil, cheia de sentimentalismo e melodrama, ele não tem as complicadas demandas culturais da arte clássica ou contemporânea.

    Enquanto as vanguardas tentam replicar os processos artísticos, o "kitsch" se limita a copiar seus efeitos. Sua interpretação precisa ser fácil, inequívoca, imediata. A gratificação, instantânea. O esforço intelectual, inexistente. Seu objetivo é o de entreter, decorar sem incomodar. É arte de resultados, cujo propósito é tão evidente quanto peças de propaganda ideológica.

    Ao se apropriar e simplificar as emoções, boa parte do mundo publicitário é "kitsch" na sua tentativa de quantificar, formular e comercializar as relações humanas. Em sua realidade simulada, a propaganda usa truques e narrativas para extrair o que há de espontâneo, empacotá-lo e, como em um suco industrializado, entregar uma versão aguada e artificial, plástica e insossa.

    Cultura da negação, o "kitsch" é uma boa forma para que marcas desprovidas de qualquer diferencial criem uma cumplicidade com seus consumidores igualmente medíocres. Ao diminuir o valor da cultura, elas massageiam seus egos e removem deles a busca por algo melhor. Seu oposto não é a sofisticação, mas a inocência.

    O poder adora o "kitsch". Em guerras e manifestações religiosas ele impera. Praticamente não há ditador que não o coloque a serviço do estado, pronto para glorificá-lo e alimentar o culto à personalidade. As imagens de fábricas produtivas e trabalhadores gordinhos e felizes representam o anti-Portinari idolatrado por qualquer governo, principalmente quando, como fazia Collor e hoje faz Putin, coloca o chefão acima das forças da natureza.

    No mundo "kitsch" das redes sociais todos são reizinhos. E procuram de seus públicos uma aceitação simples, direta, sem maiores questionamentos a que não serão capazes de responder. Não há canal melhor para isso do que a falsificação da arte do Instagram, do currículo no LinkedIn, da ironia no Twitter, do humor no YouTube, da vida no Facebook. Na forma de meme, o "kitsch" digital é facilmente compreendido, compartilhado e... esquecido.

    Arte de conveniência, produzida por linhas de montagem, o "kitsch" é entretenimento em sua essência. Seu objetivo é fazer rir, não se levar a sério, evitar a ambição cultural. Travestido de paródia, ele é vista em relógios do Mickey, em quadros do Romero Britto, em fotografias de David LaChapelle e neste ano será celebrada por Hollywood, em um filme com a Emma Watson.

    Peças "kitsch" contemporâneas, como as que as precederam, são carregadas de clichês, versões gastas e surradas de ideias que, como "Guerra nas Estrelas", um dia foram originais. Mais do que imitar a realidade, elas convidam o espectador a participar, cúmplice, da farsa que perpetuam. Um anão de jardim ou um pinguim de geladeira dentro de casa são manifestações descartáveis de autonomia subjetiva, piscadelas com irreverência lúdica.

    Enquanto a cultura clássica tinha a ambição de formar o indivíduo e ampliar sua percepção de mundo, hoje pede-se à cultura pop que "esvazie a cabeça" de um cotidiano tão carregado de estímulos e demandas. O "kitsch", ao piratear a inteligência, cultiva a insensibilidade. Suas peças substituem a experiência por charadas fáceis, típicas de séries de TV, e transformam a vida em uma liquidação de sensações.

    É a manifestação cultural perfeita para os geeks, dândis contemporâneos, imitações baratas de Jay Gatsby, Rhett Butler ou do conde Drácula. Ou, pior, imitações das imitações de Patrick Bateman ou Lucius Malfoy, eles dão maior importância para as gírias, os objetos e os hobbies de seus pares do que para sua verdadeira essência. Desesperados para imitar o conhecimento, mas sem a paciência necessária para adquiri-lo, eles transformam a falsificação estética em culto, congratulando-se em sua esperteza ao parecerem tão fúteis.

    Uma das principais funções da arte sempre foi a de buscar a transcendência. Quando genuína, ela estimula seus admiradores a decifrá-la e, no processo, a se tornarem pessoas melhores. O "kitsch", ditatorial ou religioso, editorial ou publicitário, não ter intenção maior além da peça que mostra. É o fast-food da arte, embalado em cores vivas e açucarado com replicações fáceis. Sua intenção é promover reflexos infantis enquanto escraviza seus consumidores aos valores do sistema que perpetua.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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