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    Luli Radfahrer

    Solidão em grupo

    26/01/2016 03h00

    Em uma época em que tanto se fala de privacidade, causa espanto a epidemia de solidão. Mas nas torres dos apartamentos, nas clausuras das baias, nas estações de trabalho e reunião das corporações de ofício, nas mesas de parede dos restaurantes, nos cantos escuros das festas, parques e seminários, nos banheiros de shopping centers e nas salas de encontro de famílias, jovens, velhos e crianças de todas as idades estão cada vez mais isolados, debruçados em seus retângulos luminosos, com fones de ouvido.

    Para uns, a solidão é temporária. Para outros ela veio para ficar. É um paradoxo. Nunca se viveu tanto, nunca tantos foram tão espremidos em centros urbanos e, ao mesmo tempo, nunca se viveu tão só.

    Marcada pelo saldo negativo entre o desejo de interação social e as relações efetivadas, a solidão é tão particular quanto intangível. Seus efeitos, no entanto, podem ser devastadores: ansiedade, insegurança, frustração e desamparo desmontam até o mais resistente dos indivíduos.

    Animal social em sua história, o ser humano do século 21 está cada vez mais sujeito à besta invisível que, como diz a música do Paulinho da Viola, sorri os seus dentes de chumbo. Não é exagero acreditar que solidão mate mais do que ebola. Seus efeitos não são tão visíveis nem contagiosos, mas o saldo final é mais abrangente. Vários estudos mostram que ela aumenta o risco de câncer, doenças cardiovasculares, demência, alcoolismo, acidentes e suicídio. É um problema grave e generalizado, mas pouco se fala a respeito.

    Hoje há menos contato humano, e o pouco que resta é cada vez mais difícil e menos significativo. De uma conversa honesta em que se trocam inseguranças e dúvidas a uma relação afetiva de real sinceridade, as oportunidades rareiam.

    Na falta de confidentes pessoais, um batalhão de profissionais é convocado. Psicólogos, terapeutas, psiquiatras, "coaches" e mentores nunca foram tão requisitados. Quando não se tem acesso a eles, ou quando suas orientações não são suficientes, apela-se para a automedicação, na forma de remédios, álcool, pornografia, videogames ou televisão, que raramente dão conta do problema. A ruptura dos laços sociais, que até há pouco não passava de um comentário nostálgico, rapidamente se tornou problema de saúde.

    Isso não quer dizer que o contato frequente seja obrigatório. Todo mundo precisa de um tempo livre, só, para espairecer. Longe do barulho das massas nas ruas e redes é possível respirar e pensar na vida. A escola existencialista da filosofia defende que a solidão é a essência da vida humana.

    Cada um nasce só, vive alegrias e prazeres por conta própria e morre só. Para eles, as experiências trocadas não passam de metáforas de qualidade discutível e compreensão duvidosa. Aceitar essa condição é parte fundamental da tarefa humana. Sartre, um de seus expoentes, dizia que a solidão era essencial para compreender a discrepância entre a busca por sentido na vida e o grande Nada do Universo.

    Valorizado por filósofos, monges e artistas, o isolamento voluntário sempre foi lugar de inspiração. Na tradição de várias religiões, a reclusão é considerada uma provação que leva à sabedoria. Sidarta Gautama se transformou no Buda depois de meditar só, por um bom tempo. Lao Zi escreveu o Tao Te Ching e depois foi peregrinar sozinho.

    O Velho Testamento tem várias histórias com eremitas no deserto, tidos como sábios e respeitados por transformar a solidão em percepção do mundo. O que os diferencia dos isolados contemporâneos é que sua opção era voluntária. Ou pelo menos planejada, não apresentada subitamente como fato da vida.

    Ao contrário da reflexão voluntária, o isolamento moderno acontece progressivamente, normalmente contra a vontade de suas vítimas, que demoram para reconhecer que estão sós. Até porque isso significa admitir que não são desejados, que são insignificantes, e que podem ser ignorados. É preciso muita coragem –ou desespero– para reconhecer a dor de ser só.

    Até porque as mudanças estruturais em uma sociedade cujo maior valor é o marketing, ao estimularem a competição e a exposição contínuas, reforçam e celebram o individualismo. Ele se manifesta na figura do empreendedor, do cientista louco, do artista incompreendido e de uma série de caubóis e lobos solitários, "self made".

    Não há preparo para uma sociedade tão cheia de individuais. Nunca houve grupo social como aquele em se vive hoje, que nega o coletivo em nome do individualismo "heroico", em que o que conta é vencer –na guerra, no amor, nos negócios, na vida. Nessa fúria predatória os recursos do mundo são consumidos e a desigualdade aumenta, destruindo a conexão que um dia foi a principal característica humana.

    O Facebook, nesse ambiente, é confortável. Ele permite a interação entre pessoas que pensam parecido, ao mesmo tempo que os poupa de eventuais embaraços. Tudo ali é muito simples: basta curtir, compartilhar ou bloquear. Em um ambiente de competição perene, a simplicidade tende a criar uma compulsão em afirmar as realizações próprias e a se comparar com o outro o tempo todo.

    Tão invulnerável quanto desonesto, o habitante da rede social é artificial. Suas conexões podem ser amplas, mas são rasas e fúteis. Neste mundo de comunicação instantânea e absoluta, todos são, em certa instância, pequenas farsas.

    As redes sociais não são o problema. Elas estão mais para o sintoma. Não são responsáveis pela solidão, mas veículos potencializadores dos desejos de uma vida antissocial, pós-social, bruta, competitiva e longa. É preciso reconhecê-los para que os benefícios da tecnologia não sejam destruídos por seus caprichos.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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