• Colunistas

    Friday, 03-May-2024 16:30:13 -03
    Luli Radfahrer

    Este corpo não te pertence

    02/02/2016 02h00

    Fala-se muito na tal computação vestível, a área da internet das coisas ligada ao vestuário. Impulsionada pelo barulho de mídia feito pela pulseirinha da Nike e os óculos do Google (ambos quase natimortos) e pelo relógio da Apple (que ainda não é um iPhone, um iPod ou iPad), a indústria ainda não tem o seu representante "matador". Mas tudo indica que ela representa um futuro possível para a eletrônica de consumo.

    A primeira geração da nova tecnologia não passa de uma extensão dos smartphones. Conectados via bluetooth, eles notificam a chegada de mensagens de forma discreta. Como isso não é o suficiente para justificar a compra de novos aparelhos, fabricantes investem em uma variedade de mensurações corporais. Para escapar da legislação médica, são classificados como acessórios de "estilo de vida", assistentes pessoais para criar ou mudar hábitos de seus usuários.

    Há produtos para medir a qualidade do sono, temperatura e condutividade da pele (Jawbone); passos caminhados, degraus subidos, distância percorrida, calorias gastas e batimento cardíaco (Fitbit e Misfit); eletrocardiograma e temperatura corporal (Qardio); períodos férteis (Kindara); consumo de álcool (BACtrack); cigarros fumados (Quitbit); bactérias corporais (uBiome); pressão sanguínea e glicose no sangue (Cooey e Whitings).

    Os esportistas têm à disposição relógios para a corrida (Polar), natação (Finis) e Triatlo (Garmin), entre outros. Como não poderia faltar, os brinquedos eróticos também entraram na onda. OhMiBod é um vibrador que também serve para exercitar o períneo e vem com um aplicativo para o seu controle remoto, sincronizando-o com a pulsação do parceiro.

    "Tecnologia Vestível" é um termo tampão, que não significa muita coisa. De uma camisa de fibra sintética a um celular preso na cintura, muitos produtos podem ser classificados como tal. Os novos aparelhos, por mais modernos que sejam, ainda não inspiram desejos além do mundo nerd. São, em geral, grandes, feios, ridículos, incômodos, trabalhosos e incompatíveis a ponto de causar constrangimentos sociais. São, enfim, ainda tecnológicos demais.

    Mas isso está para mudar. Empresas como Fossil e Tag Heuer perceberam que a coleção de cerca de 30 modelos de relógio da Apple avançava para o território da moda e logo lançaram os seus cebolões conectados. Seguindo a mesma linha, a Swarovski se associou à Misfit para criar uma linha de "joias inteligentes", aproximando o mercado de luxo às inovações tecnológicas.

    Tecnologia nasce cara, frágil e grande. Com o tempo se torna barata, resistente e invisível. Essa tendência permite que chips descartáveis possam ser engolidos (para monitorar o sistema digestivo sem a necessidade de uma endoscopia) ou descartados. A L'Oréal anunciou na última feira de novidades tecnológicas dos EUA que distribuirá gratuitamente um adesivo descartável com um sensor capaz de identificar o nível de radiação ultravioleta absorvido pela pele e transmitir a informação para um aplicativo no smartphone.

    Não tardará para que a computação e a conexão estejam tão integradas ao modo de vida urbano a ponto de não ser mais possível identificar os objetos conectados no corpo e no ambiente –e o que faz cada um.

    É bastante provável que a próxima geração de acessórios "inteligentes" tenha um comportamento mais sutil do que as pulseiras de hoje. Um bom exemplo do que poderão ser capazes de fazer está nos aparelhos de surdez. Esses pequenos amplificadores conectados têm algoritmos poderosos, capazes de filtrar determinadas frequências enquanto reforçam outras, adaptando-se ao ambiente de seus portadores e aprendendo com sua rotina. Nos ouvidos de pessoas que não tenham deficiências auditivas, eles poderão criar um tipo de audição dedicada e telescópica semelhante à da antiga série de TV da "Mulher Biônica".

    A experiência subjetiva de realidade aumentada, propiciada e mediada por equipamentos tende a ser absorvida pelo cérebro e, com o tempo, considerada normal. Neurocientistas chamam essa capacidade de adaptação de "neuroplasticidade". A massa cinzenta pode, conforme o estímulo recebido, crescer ou diminuir espontaneamente, criando ou eliminando conexões neurais no processo e, com elas, novas percepções de mundo.

    Novos aparelhos de computação pessoal poderão facilmente criar uma casta de super-humanos com sentidos amplificados. Controlados por empresas gigantes, sentidos híbridos deverão gravar tudo o que for absorvido e interpretado por eles. E provavelmente comercializarão os dados que um dia foram chamados de pessoais.

    E isso é apenas o começo. Aparelhos como Thync e Muse prometem interferir na dinâmica cerebral, através de pequenos impulsos elétricos para alterar o comportamento de seus usuários. O primeiro se propõe a estimulá-los ou relaxá-los conforme a necessidade. O segundo se propõe a reforçar o estado de foco durante a meditação.

    Nossa relação com as máquinas é cada vez mais simbiótica. Não tardará para que chips implantados no cérebro aumentem a capacidade de aprendizado, removam hábitos daninhos ou modifiquem pensamentos. Permitiremos que isso aconteça? Provavelmente sim.

    A tecnologia está rapidamente deixando de ser um acessório para se tornar componente indispensável da identidade, fundamental para estabelecer alguma vantagem em uma sociedade extremamente competitiva. Com o tempo, o que um dia foi diferencial é assimilado por todos e se transforma no novo "normal". Equipamentos personalizados, eficientes, precisos, invisíveis e duráveis mediarão as experiências que temos da realidade, alterando a percepção do mundo.

    O homem do futuro deverá ser fisicamente muito parecido conosco. Seus hábitos e linguagem, no entanto, nos parecerão incompreensíveis –bem como o mau uso que ele provavelmente fará de tanto poder.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024