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    Luli Radfahrer

    A vaidade das cartas abertas

    23/02/2016 02h03

    No livro "Player One", de Douglas Coupland, um pastor que abandonou a igreja se queixava de haver pouquíssima originalidade nos pecados. Depois de décadas a ouvir os horrores contados por seus fiéis, sua reação era uma mistura de desprezo e tédio.

    O filósofo católico São Tomás de Aquino considerava a vaidade, sétimo dos "pecados capitais", aberração tão gigantesca e onipresente a ponto de merecer atenção especial. Para ele não fazia sentido a mania que tantos membros da mesma espécie e sociedade tinham de se sentirem superiores.

    Na época das páginas pessoais e biografias recontadas, nunca se esforçaram tanto para mostrar que, mesmo em um mundo de iguais, uns podem se dar ao luxo de ser mais iguais.

    O estilo de vida que valoriza celebridades como o MC Bin Laden, cuja única razão para a notoriedade é a capacidade de chocar, machucar, ofender ou polemizar sem proposta ou formação, não é diferente do vício, espalhado pelo mundo, de levar vantagem em tudo.

    Mistura de sala de espelhos e câmara obscura, a mídia social é um dos jogos mais perversos já inventados: ela é fruto da competitividade doentia que corrói a sociedade americana, especialista em identificar os erros dos outros enquanto ignora os próprios, empenhada em concursos de sofrimento e tragédia.

    Já faz tempo que a vaidade eletrônica gera pandemias de ansiedade e depressão. Ao estimular a concorrência entre dores e glórias, suas linhas do tempo são uma exposição constante da exceção cotidiana. Cada vitória ou derrota é logo contestada por "amigos", que não consideram nada ruim o suficiente e nenhuma história tão gloriosa quanto a autobiografia.

    Essa vida social antissocial é uma forma inegável de auto sabotagem. Se as vítimas desse processo fossem apenas os participantes ativos, o problema já seria grave mas poderia estar sob controle. Há, no entanto, fortes indícios de que ela vai muito além. São comuns histórias tristes como a do filhote de Golfinho morto na praia Argentina em nome de uma "selfie", o banimento da pobre mãe que desabafou na rede social e o comportamento infame do boteco da Vila Madalena que se recusou a ouvir as queixas de assédio contra suas clientes e ainda divulgou uma versão editada do vídeo das câmaras de segurança para expor as vítimas a julgamentos (perdão, execuções) morais públicas. Elas mostram que há pouquíssimas considerações morais na competição selvagem da mídia social.

    Foi nesse contexto que o termo "vaidade" apareceu. Um gringo qualquer, daqueles que brotam todo verão cheios de arrogância e opiniões formadas sobre tudo, se meteu a criticar o brasileiro.

    O diagnóstico tem pontos interessantes. Não tem nada de inédito e pouquíssimo de correto. É texto de Facebook, com a profundidade que lhe é característica. Como é muito mais fácil de ler do que Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro ou Roberto DaMatta, vale por seu poder de alcance. Mesmo que seu conteúdo não merecesse constar da sinopse da introdução de um resumo de um comentário de uma nota de rodapé dos autores acima.

    Sua análise quer audiência, não reflexão. Tanto que repete a fórmula que ele mesmo praticou ao criticar os americanos. Ela não tem a preocupação moral de brasilianistas como Richard Morse, Albert Fishlow, Thomas Skidmore ou, como revelou uma edição da "Piauí", o quase desconhecido Nathaniel Leff. Muito pelo contrário. Como quase tudo, o texto exemplifica a gigantesca vaidade que assola a rede. Se conseguisse convencer alguns a prestar atenção no problema, teria prestado um belo serviço. Mas isso não acontecerá.

    Vaidade é um problema sério. E generalizado. Ela corrompe a Itália, destrói a Rússia, desequilibra a China e cria uma bela confusão no Oriente Médio. Ela segura ditadores no poder ao redor do mundo, estimula desigualdades e reforça diferenças. Nem toda filosofia da Grécia conseguiu salvá-la da corrupção causada por vaidade, que também corrói a Turquia e pode transformar Hungria e Áustria em novos países nazistas.

    Nos EUA, ela transformou a Ética Protestante em um sistema de competitividade extrema, que divide sociedades entre "vencedores" e "perdedores", cria mendigos e lhes nega as devidas esmolas. Ela cria Donalds e Bernies, Clintons e Bushes. Cada um deles com uma proposta de realidade paralela que dificilmente tornará o mundo melhor.

    É fácil identificar o erro no outro, o rasgado sempre riu do esfarrapado. Quem compartilhou as palavras da carta, tomando-as como verdade universal, precisa ter o cuidado de não se comportar como quem se apressou em julgar a mãe ou as vítimas do assédio no boteco, acreditando, por vaidade, que é diferente. É preciso muita arrogância para acreditar-se superior à rede, ao país, à espécie.

    A ideia de "mudar o povo", proposta pelo gringo, é preconceituosa, fascista e condescendente. E repete o discurso elitista que divide o povo em vez de criar condições para todos. O "jeitinho brasileiro" precisa morrer. O "american way" também. Não é fácil.

    Ninguém é a única fonte do problema. Nem da solução. Ou seguimos todos juntos ou ninguém irá a lugar algum.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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