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    Luli Radfahrer

    Minecraft não é videogame

    01/03/2016 02h04

    Ou Facebook é. Enquanto a rede social se caracteriza pela competição entre perfis e memes, o universo de cubos marrons, verdes e cinzas reforça a construção e colaboração. Enquanto a rede azul e suas filiais estimulam o usuário a comparar a vida besta que leva com o cotidiano maquiado de seus "amigos", o bloco de construção digital cria mundos colaborativos.

    Com mais de 22 milhões de downloads, "Minecraft" é tecnicamente um dos jogos para computador mais vendidos de todos os tempos. A popularidade dos vídeos e fóruns dedicados a ele também o qualifica como rede social. Mas é a dedicação de seus usuários a construir estruturas que o torna único.

    Sua principal diferença para jogos tradicionais como "Counter Strike" ou "FIFA" é que a competição é muito menos importante do que a criação. Há batalhas e conquistas de recursos, mas elas são secundárias. Há quem considere o "Minecraft" o aplicativo de CAD mais popular de todos os tempos, já que cada usuário é, de certa forma, um construtor.

    Essa "construção" não tem objetivo definido. Ao contrário de aeromodelos, não há certo ou errado. Diferentemente de jogos de simulação como "The Sims", não há prédios, hospitais ou estradas prontas. Todas as estruturas precisam ser criadas a partir do nada. Da mesma forma que nos blocos de Lego, existem diagramas e modelos. Mas a verdadeira graça está na sensação de que tudo pode ser feito por ali.

    Com tempo e dedicação, crianças fazem hospitais em que doentes flutuam, vulcões que cospem vacas ou casas invertidas. Programadores desenvolvem robôs que automatizam estruturas e criam modificações nas possibilidades do jogo. Nerds em geral criam sistemas complexos, jogos e até circuitos elétricos por lá. Em 2014, uma agência governamental da Dinamarca –terra do Lego– criou uma réplica fiel do país em escala real no mundo de fantasia.

    O desafio simples da construção promove ideias criativas, colaboração e compartilhamento. Como em Lego, boa parte das estruturas criadas é simples. Mas de vez em quando alguém cria o inimaginável.

    No "Minecraft", a narrativa é muito menos importante do que o universo. Diferentemente de outros jogos, não há objetivo nem final. O caminho é o fim. O melhor termo para classificá-lo é "metaverso", uma espécie de ampliação da vida pela reunião de mundos virtuais, redes sociais e realidade aumentada.

    O nome, criado pelo escritor Neal Stephenson, foi popularizado (e quase destruído) pela rede "Second Life" em 2003. A ideia não era ruim, mas a lerdeza dos servidores e aparência das personagens acabou com o produto e quase matou o conceito.

    A popularidade do ambiente aberto, pouco competitivo e sem objetivos claros, no entanto, veio para ficar. No "Minecraft", ela ganhou popularidade entre as crianças enquanto diminuiu a resistência de pais. Nas escolas, alguns professores perceberam ser possível canalizar essa paixão para a construção de projetos que viabilizassem conteúdos didáticos.

    Ao explorar o mundo em vez de receber, passivo, o conteúdo das salas de aula, livros e sistemas de ensino, o aluno poderia criar uma relação mais ativa com o aprendizado. Nesse ambiente de simulação, como no mundo real, não há respostas totalmente certas. Pelo contrário, várias estratégias podem levar ao mesmo resultado. É construtivismo e construcionismo na prática.

    Já faz algum tempo que estudos científicos mostram as possibilidades didáticas dos videogames. A maioria, no entanto, ainda se concentra nas habilidades técnicas. Defende-se que games, praticados com moderação, podem levar a alterações da plasticidade cerebral, aumento da percepção espacial, melhoria na capacidade de planejamento estratégico e desenvolvimento de habilidades motoras.

    Os experimentos com o "Minecraft" mostram que esse progresso ir muito além. Como seu universo pode ser restrito, é possível criar por ali experiências controladas e seguras, ao mesmo tempo em que se desenvolvem conceitos essenciais para o progresso da ciência, como a validação de hipóteses e a consulta entre pares. São valores que, como a cidadania digital e a privacidade, eram até recentemente considerados avançados demais para o alcance de crianças pequenas.

    "Minecraft" também pode ser usado para ensinar a programar computadores, habilidade essencial em um mundo cada vez mais dominado por estruturas digitais. Código, como já foi defendido nesta coluna, pode ser considerado tanto um gênero literário como uma espécie de língua universal. Iniciativas de empresas como LearnToMod ensinam seus usuários a modificar partes do "Minecraft" através de Blockly, uma linguagem de programação simples, próxima do Javascript. Acessíveis para crianças desde os 8 anos de idade, essas técnicas podem ensinar conceitos complexos de programação como uma forma irresistível de dar "poderes mágicos" aos personagens.

    A apropriação educacional de games e metaversos ainda é primária, desenvolvida voluntariamente e sem algo que possa ser chamado de método. A maioria das aplicações ainda está nos laboratórios de tecnologia, mas nada impede que avancem para outras disciplinas. Como Lego, a educação com "Minecraft" ainda é uma solução à procura de um problema. O grande desafio está na capacitação de professores para esse novo horizonte de alunos-construtores.

    Da mesma forma que mestres em RPGs, novos professores poderão criar o contexto, desenvolver as condições que iniciam a jornada e estimular cada participante a usar seu conhecimento e habilidade para resolver desafios dentro de suas capacidades. Aulas assim podem ser envolventes, construtivas e muito diferentes dos enlatados tão desanimadores para professores e alunos. Com a ajuda de tecnologias como Hololens e impressoras 3D, os blocos digitais podem se integrar facilmente ao mundo físico, ampliando a experiência didática para espaços nunca vistos.

    Como em toda nova tecnologia, a nova prática não é isenta de riscos. Alguns temem que, sem a devida integração social, a interação com o mundo pelas lentes do "Minecraft" pode criar uma espécie de isolamento doentio, mostrado por documentários sombrios como "Login2Life" ou "Second Skin".

    É um risco. Mas, antes que isso se torne uma ameaça, o risco maior está na filosofia da "Microsoft", atual proprietária do metaverso. Por mais que a empresa tenha anunciado que lançará sua versão educacional, ela precisará torná-la compatível com o que já foi construído em suas versões antigas, caso contrário talvez não justifique o esforço de reconstruí-las.

    Blocos de Lego produzidos em 1958, vale lembrar, encaixam-se perfeitamente nas peças contemporâneas, da mesma forma que peças de crianças podem ser totalmente integradas nos conjuntos de adultos. É uma bela lição para uma indústria que tanto se apressa em tornar seus brinquedos obsoletos.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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