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    Luli Radfahrer

    A realidade virtual em que já vivemos

    15/03/2016 10h39

    É consenso entre analistas de mercado que os produtos e serviços de realidade virtual deverão se transformar nas novas plataformas de computação. Da mesma forma que um dia foram os PCs e hoje são os dispositivos móveis, essa tecnologia deverá ser a responsável pela criação de novos hábitos e interações em áreas tão diversas quanto medicina ou mercado imobiliário, educação ou guerra.

    Independente do que o futuro traga, a realidade é que boa parte da vida contemporânea já ocorre no virtual. Mediados por Photoshop, "League of Legends" e Facebook, muita gente já transita em dimensões alternativas, cujos parâmetros e fronteiras parecem estar apenas em sua imaginação.

    Não é pequeno o número de pessoas que, isoladas e autistas em simulações particulares da realidade, parecem viver em um universo à parte. Ali os conceitos de tempo, espaço, energia e matéria não passam de abstrações. Virtualmente livres das restrições de passado, presente ou futuro, para eles não parece haver limite que não possa ser questionado, nem fato imune a modificações ou interpretações. Suas referências, confusas, multiplicam-se indiscriminadamente na forma de memes e compartilhamentos apressados.

    Eles estão por toda parte. São industriais e políticos que acreditam estar acima da lei, juízes e promotores apressados em tirar conclusões, governantes que viram as costas para seus eleitores, comerciantes e bancos incapazes de compreender o contexto de seus clientes, grandes empresas a explorar fornecedores, investidores alheiros à finitude dos recursos explorados, celebridades com sua capacidade ímpar de dizer a coisa errada e muita, muita gente "normal" como eu ou você. Em comum, todos parecem estar tão imersos no mundo imaginário que perderam o contato com a realidade.

    O ambiente social sempre teve suas Marias Antonietas. O problema de hoje é o número e intensidade com que se multiplicam. Toda vez que uma telinha reproduz uma visão particular da realidade, ecoada e amplificada pelos cliques de redistribuição, o contexto é fragmentado e os fatos, adaptados.

    No virtual o pensar é terceirizado. E não corresponde mais ao existir. Otimistas defendem que, ao permitir o trânsito entre identidades múltiplas, a realidade virtual facilitaria o aprendizado e contribuiria para diminuir preconceitos. Mas as redes sociais mostram que o mais provável é que o contrário aconteça. Uma experiência dublada que permita o abandono egoísta em um estilo de vida hedonista, mesmo que seja em um mundo imaginário, é tentadora demais para ser descartada.

    A versão editada da realidade costuma ser melhor, para seu criador, do que o mundo que lhe deu origem. O corpo, fragmentado pelas próteses que o isolam das leis da Física, pode assumir a plástica que imaginar e se adaptar ao que seu dono acredite ser o tipo "certo" de corpo, de vida, de privilégios merecidos. Para que combater as injustiças do mundo se é possível desfrutá-las?

    O êxodo para o pensamento mágico está mais para uma regressão infantil do que para uma expansão da mente. Ele se aproxima da incapacidade da criança de distinguir fato de ficção e de compreender as necessidades do outro. Sem confronto, a criança mimada desenvolve problemas graves de socialização. Estruturas servis e relacionamentos pragmáticos comprometerão seu comportamento, o desenvolvimento de suas relações pessoais e, em última instância, sua real percepção do mundo.

    Cada indivíduo coloca seus óculos, veste o uniforme ou entra na caixa de simulação sozinho. Vivencia suas experiências mágicas sem concessões e sai de sua caixa igualmente só. Nada foi aprendido, por mais que tudo possa ser compartilhado. Aldous Huxley já dizia que da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares. Isso nunca esteve tão próximo da realidade.

    A migração da espécie humana para os ambientes de simulação vem crescendo nas últimas décadas. De tão presente, abrangente, invisível, capaz de dar vida aos mais variados objetos, a informática é cada vez mais "fantasmática". Seria uma enorme decepção ver esse grande poder transformador canalizado para fazer com que o escapismo se transforme em uma epidemia global.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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