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    Manuel da Costa Pinto

    Em "Cosmópolis", limusine blindada é metáfora da mecânica do mundo financeiro

    DE SÃO PAULO

    13/01/2013 03h00

    Fetiche de mauricinhos, "viagra" de ricos vetustos, o automóvel é o mais arcaico e duradouro símbolo do sucesso econômico. Em "Cosmópolis", de David Cronenberg, deixa de ser objeto de desejo para ser o próprio corpo desejante, que desliza na busca agônica do gozo.

    O diretor canadense escolheu a metáfora ideal para filmar o modo atual de funcionamento do capitalismo: uma limusine blindada circulando pelo centro financeiro do mundo enquanto tudo se
    dissolve à sua volta.

    Divulgação
    Robert Pattinson em cena do filme de David Cronenberg
    Robert Pattinson em cena do filme de David Cronenberg

    Dentro dela está Eric Packer (vivido pelo ator Robert Pattinson, da série "Crepúsculo"), investidor que, aos 28 anos, já amealhou centenas de milhões de dólares e atravessa Manhattan enquanto seu segurança o alerta para manifestações e atentados.

    Durante o percurso, seu bólido recebe visitas de uma "marchande" (com a qual faz sexo), de consultores financeiros, de um médico e de um técnico em informática. Os dois últimos assinalam as duas fobias de Packer: ele faz "check-ups" diários para testar sua saúde física e a vulnerabilidade do sistema de informações que garante sua fortuna.

    Em artigo na Folha, Vladimir Safatle mostrou como o cineasta, mestre na arte de explorar os limites do desejo pelas interações entre corpo e tecnologia (filmes como "Crash - Estranhos Prazeres" e "Videodrome - A Síndrome do Vídeo"), muda aqui de diapasão: "Com 'Cosmópolis', Cronenberg lembrou como esses sujeitos assombrados por seu próprio gozo não são o ponto de desajuste da vida social. Eles são o verdadeiro cerne de funcionamento do capitalismo contemporâneo".

    Ou seja, no cibercapitalismo, o dinheiro não compra mercadorias: compra mais dinheiro, alimenta-se de si mesmo com compulsão pornográfica. Acrescente-se apenas que esse corpo desejante conserva, na forma de fobias e lacunas inconscientes, o resíduo dos objetos de prazer perdidos.

    Enquanto sua fortuna evapora em especulações, Packer atravessa Nova York em busca de uma barbearia. O que parece um capricho (por que se expor ao perigo de bairros degradados por um simples corte de cabelo?) denota também um lapso autodestrutivo, que o leva ao contato com o sofrimento real de pessoas tomadas pela síndrome de irrealidade que ele mesmo provocou. Em seu desfecho enigmático e violento, "Cosmópolis" propõe que o cibercapital, como a economia psíquica, também se move por pulsão de morte.

    COSMÓPOLIS***
    DIRETOR: David Cronenberg
    DISTRIBUIDORA: Swen/Imagem Filmes (locação)

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    CONEXÃO
    LIVRO
    COSMÓPOLIS***
    Há poucas discrepâncias entre o filme e o profético romance que serviu de base a Cronenberg. Uma delas é que a moeda que desestabiliza o mundo, aqui, é o iene japonês, e não o yuan chinês do filme.
    AUTOR: Don DeLillo
    TRADUÇÃO: Paulo Henriques Britto
    EDITORA: Companhia das Letras (2003, 200 págs., R$ 24,50)

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    DISCO
    ESCULTURAS DE VENTO****
    Bocato (Selo Sesc, R$ 30 -R$ 24 até o dia 30/1-, CD duplo)
    Esse disco surpreendente traz 16 composições orquestrais do trombonista Bocato. Um dos grandes nomes da música instrumental brasileira, ele se distancia aqui das ornamentações virtuosísticas do jazz e de suas variantes. São peças que combinam formas eruditas e matrizes eletrônicas, resultando numa suíte que alterna introspecção grave com momentos
    solares, sempre com enorme rigor.

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    FILME
    O PORTO***
    Aki Kaurismäki (Imovision, R$ 39,90)
    A cidade de Le Havre (gélido porto do norte da França) é abalada pela chegada de imigrantes clandestinos da África. Um engraxate boêmio e desencantado consegue reunir a comunidade para proteger um jovem refugiado -numa fábula idílica, mas nem por isso menos encantadora, sobre os conflitos étnicos e culturais da Europa contemporânea.

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    LIVRO
    A MÚSICA DO TEMPO INFINITO****
    Tales Ab'Sáber (Cosac Naify, 160 págs., R$ 45)
    Essa análise da cena tecno (presente, por exemplo, no filme "Corra, Lola, Corra") vai bem além das "raves" embaladas por alucinações químicas e pulsações sonoras. Psicanalista, o autor mostra como, no fluxo delirante dessa subcultura, há uma conjunção entre hedonismo consumista, ética narcisista e tecnologia que acelera em ritmo maníaco a alienação da sociedade do espetáculo.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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