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    Manuel da Costa Pinto

    Roma sob a cruz negra

    24/02/2013 04h46

    A série "Os Bórgias" tem relação bem menos evidente com a renúncia de Bento 16 que os filmes evocados nas últimas semanas por comentaristas políticos e críticos de cinema.

    A mais impressionante confluência entre ficção e realidade é "Habemus Papam" (2011), em que o cardeal eleito tem uma crise de pânico e não assume o pontificado, deixando um vácuo de poder retratado por Nanni Moretti de forma cômica, porém decorosa.

    Duplamente profético, "As Sandálias do Pescador" (1968) funde a personagem de um cardeal vindo do leste europeu, como o polonês Karol Wojtyla (João Paulo 2º), com um papa que, durante a noite, desce incógnito às ruas de Roma, prefigurando as aflições de Ratzinger (Bento 16).

    Se, em ambos os filmes, o pontífice aparece em conflito íntimo com a grandeza política e as vaidades mundanas de sua tarefa, a série televisiva "Os Bórgias" oferece perspectiva nada edificante do papado.

    Divulgação
    O ator Jeremy Irons (centro) no papel do papa Alexandre 6º em cena da primeira temporada
    O ator Jeremy Irons (centro) no papel do papa Alexandre 6º em cena da primeira temporada

    Afinal, o espanhol Rodrigo Bórgia, ou Alexandre 6º, entrou para a história como símbolo da corrupção da Igreja. Teve várias amantes e ao menos nove filhos --dentre eles, Lucrécia (célebre por suas maquinações de alcova) e César Bórgia (que inspirou "O Príncipe", tratado de Maquiavel sobre a arte de governar dosando força e astúcia).

    A produção do irlandês Neil Jordan, cuja primeira temporada estreou em 2011 e está nas locadoras, é impecável do ponto de vista cenográfico, com belíssima reconstituição da Roma renascentista e um grande ator, Jeremy Irons, no papel de Alexandre 6º.

    Não faltam envenenamentos, conspirações e personagens como Savonarola -pregador que, chocado com a devassidão papal, diz ter visto "uma cruz negra sobre a Babilônia que é Roma". Tampouco faltam infidelidades históricas (o torpe assassinato de um príncipe turco acolhido pela Igreja com intenções geopolíticas, mas que na verdade morreu de causas naturais) e filológicas (o uso do termo "sprezzatura", que define a conduta do cortesão, mas corresponde a codificação social posterior).

    Em compensação, Jordan evita exagerar os aspectos luxuriosos do papado de Alexandre 6º. Mostra um pontífice que até certo ponto renuncia à vida privada em nome do poder -na contramão de Bento 16, que retornou à vida espiritual para denunciar os excessos do Vaticano.

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    CONEXÕES

    MINISSÉRIE OS BÓRGIAS ****
    DIRETOR: Neil Jordan
    DISTRIBUIDORA: Paramount (R$ 59,90; segunda temporada e pacote com as duas serão lançados em maio)

    MINISSÉRIE ROMA - 1ª e 2ª TEMPORADAS ****
    A série sobre a implantação do Império Romano por César, Marco Antônio e Otávio fixou o padrão de qualidade adotado por "Os Bórgias".
    DIRETOR: Kevin McKidd
    DISTRIBUIDORA: Warner (R$ 59,90 cada temporada ou R$ 89,90 o pacote com as duas)

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    LIVROS

    A VIDA PRIVADA DE STÁLIN ***
    Lilly Marcou; tradução de André Telles (Zahar, 258 págs., R$ 54,90 o livro e R$ 34,90 o e-book)

    Sempre problemática, a humanização de tiranos históricos tende a justificar seus atos. Ao reconstituir as mazelas pessoais do sangrento líder soviético, porém, a pesquisadora francesa (de origem romena) consegue realçar traços de uma personalidade paranoica e insegura, que se projeta sobre suas ambições de estadista.

    O SORRISO DA MANU ****
    Toninho Ferragutti (Borandá, R$ 27,90)

    Virtuose da sanfona, Ferragutti mostra como o instrumento vai muito além do registro popular. Em disco ousado (cujo título homenageia sua filha), ele mescla estruturas do flamenco e formações da música de câmara, inoculando na sanfona brasileira a dinâmica e o andamento não linear do repertório erudito.

    ILÍADA ****
    Homero; tradução de Frederico Lourenço (Penguin-Companhia, 720 págs., R$ 38)

    O primeiro clássico ocidental tem boas traduções, mas que em geral ofuscam o teor épico para tentar recriar o efeito poético (como na de Odorico Mendes) ou sacrificam a poesia em nome da clareza. Nessa nova versão, o helenista português Frederico Lourenço conseguiu um notável equilíbrio entre narrativa e ritmo.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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