Mais radical dos gestos humanos, o suicídio provoca perplexidade ainda maior quando cometido na velhice. Foi o que ocorreu com o pai do escritor espanhol Antonio Altarriba, que, em 2001, aos 90 anos, jogou-se do alto da casa de repouso em que definhava depois de uma vida atravessada por desilusões e pela guerra civil.
A tentativa de compreender o gesto paterno, de atar aqueles fios que poderiam ter conduzido a um fim resignado, mas o levaram a negar qualquer reconciliação, resultou no romance gráfico "A Arte de Voar", com roteiro de Altarriba e desenhos de Kim, cartunista da cena underground espanhola.
| Kim/Reprodução | ||
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| Romance gráfico de Antônio Altarriba articula suicídio do pai, aos 90 anos, em 2001, à Guerra Civil Espanhola |
A opção pela história em quadrinhos é justificada no comovente posfácio, em que Altarriba conta como abdicou de organizar as anotações do pai pela voz de um narrador: "A forma romanesca (...) teria garantido o controle absoluto do projeto, submetido apenas às minhas capacidades de escrita". Em vez disso, adotou um tipo de representação em que as personagens "têm uma forma antes de possuir um caráter, uma projeção sobre o papel antes de uma intenção de vida".
Cada seção de "A Arte de Voar" é aberta por uma imagem do corpo do suicida descrevendo seu último voo. Nos cartuns propriamente ditos, o texto tem espaço incomum, como se a narrativa procurasse devassar com palavras a opacidade do vivido, saturando o traço realista dos quadrinhos em preto e branco.
O envolvimento do pai com os anarquistas em conflito com os falangistas (conservadores que levaram o general Franco ao poder na Espanha) dá início a uma sucessão de quedas: as humilhações num campo de refugiados na França, a clandestinidade durante a Segunda Guerra e, sobretudo, a decepção com ex-combatentes envolvidos em negociatas.
E o fim do velho pai no asilo, assolado por alucinações kafkianas, acaba conferindo conotação ao mesmo tempo épica e depressiva ao ato final de quem se recusa a sobreviver às próprias utopias.
LIVRO
A ARTE DE VOAR ****
AUTOR: Antonio Altarriba
DESENHOS: Kim
TRADUÇÃO: José Feres Sabino
EDITORA: Veneta (224 págs., R$ 29,90)
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CONEXÕES
LIVROS
SOLDADOS DE SALAMINA ****
Romance sobre episódio real da Guerra Civil Espanhola em que o ideólogo da Falange
foi misteriosamente poupado de um fuzilamento pelos republicanos (tornando-se depois ministro da ditadura), explicitando ambiguidades do conflito fratricida.
AUTOR: Javier Cercas
TRADUÇÃO: Wagner Carelli
EDITORA: Globo
(2012, 274 págs., R$ 34,90)
MAUS - A HISTÓRIA DE UM SOBREVIVENTE ****
O cartunista nova-iorquino (nascido na Suécia) reconstitui a história do pai, sobrevivente do nazismo assombrado pelo suicídio da mulher, na forma de uma alegoria em que judeus são representados como ratos e alemães como gatos.
AUTOR: Art Spiegelman
TRADUÇÃO: Antonio
de Macedo Soares
EDITORA: Companhia
das Letras (2005, 296 págs., R$ 47)
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LIVRO
O BRASIL EM MOVIMENTO ***
John dos Passos, tradução de Magda Lopes (Benvirá, 288 págs., R$ 39,90)
Norte-americano descendente de portugueses da ilha da Madeira, o autor do caleidoscópico romance "Manhattan Transfer" visitou o Brasil três vezes, entre 1948 e 1962. Seus relatos da experiência incluem encontros com Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, a percepção do simbolismo da construção de Brasília e do caráter sentimental da vida pública brasileira.
DISCO
RONALDO MIRANDA:OBRAS PARA PIANO ***
Patrícia Bretas (independente, R$ 30)
"Incisivo", nome de uma das "Três Micro-Peças" do compositor carioca nascido em 1948, define o conjunto dessas obras interpretadas com rigor e expressividade. Melodias incandescentes vão do atonalismo e da fuga ao frevo e ao tango, desconstruídas com uma liberdade que permite nostalgias como as "Variações Sérias Sobre um Tema de Anacleto de Medeiros".
FILME
MUSASHI - TRILOGIA SAMURAI ***
Hiroshi Inagaki (Versátil Home Video, R$ 69,90, DVD triplo)
Baseados no romance histórico de Eiji Yoshikawa publicado nos anos 1930, esses três filmes protagonizados pelo ator Toshiro Mifune flagram a passagem do Japão feudal para a unificação do país, no século 17. No percurso de formação do samurai Musashi, a violência desgovernada dá lugar ao aperfeiçoamento ético, com bela reconstituição de época.
| Divulgação | ||
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| O ator Toshiro Mifune na pele do samurai Musashi, em filme baseado no romance histórico de Eiji Yoshikawa |
É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.