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    Manuel da Costa Pinto

    Filme mescla trama de livro com biografia de Dostoiévski

    31/03/2013 03h00

    Os créditos iniciais de "O Grande Pecador" informam que esse filme de 1949 se passa no cassino de uma pacífica cidade europeia dos anos 1860 e é "inspirado na obra de um grande escritor, e também jogador, que apostou a vida e ganhou a imortalidade".

    Não há referência explícita a Dostoiévski (a não ser na capa do DVD), mas quem conhece a biografia do escritor russo logo percebe que o roteiro mescla elementos da vida do autor de "Os Irmãos Karamázov" com a trama de seu romance "Um Jogador".

    Dostoiévski era viciado em jogo, torrou seus modestos rendimentos nas roletas alemãs de Wiesbaden e Baden Baden e ambientou seu romance satírico na imaginária Roletenburgo --onde uma trupe de russos dissolutos convive com tipos que encarnam a pérfida afetação francesa, o pedantismo cortês dos ingleses e, sobretudo, a moral luterana dos nativos. Já "O Grande Pecador" (título inspirado no livro que Dostoiévski projetava escrever quando morreu) se desenrola na própria Wiesbaden e transforma Aleksiéi (protagonista do romance) no escritor Fedja --vivido pelo galante Gregory Peck.

    Divulgação
    Os atores Ava Gardner e Gregory Peck em cena de "O Grande Pecador", filme de 1949
    Os atores Ava Gardner e Gregory Peck em cena de "O Grande Pecador", filme de 1949

    Perde-se, aqui, o cerne do romance, que contrapõe o caráter desregrado dos russos ao calculismo pecuniário, disfarçado de ética puritana, dos alemães e dos ocidentais, incapazes de penetrar nas ambivalências da alma humana.

    Em compensação, o filme incorpora dados biográficos interessantes. Apaixonado pela jogadora contumaz Pauline Ostrovsky (a deslumbrante Ava Gardner), Fedja aprende a apostar na roleta para salvar a amada, é obrigado a recorrer a uma repugnante agiota (em cenas que remetem a "Crime e Castigo") e termina hipotecando seus direitos autorais, uma referência ao contrato aviltante que Dostoiévski foi obrigado a assinar com seu editor: se não entregasse um novo livro na data (e esse livro seria exatamente "Um Jogador"), ele perderia todos os direitos de suas obras vindouras.

    Muito criticado à época por ficar a meio caminho entre a adaptação literária e a biografia, "O Grande Pecador" consegue, entretanto, recriar a atmosfera febril do livro de Dostoiévski, em que o dinheiro passa para o segundo plano, dando lugar ao frenesi suicida do escritor que apostou numa vida e numa literatura de riscos.

    FILME
    O GRANDE PECADOR *
    DIRETOR: Robert Siodmak
    DISTRIBUIDORA: Versátil Home Video (R$ 44,90)

    LIVRO
    UM JOGADOR **
    Sob a trama rocambolesca desse romance de 1866, Dostoiévski faz crítica ao espírito do capitalismo e satiriza o materialismo burguês.
    AUTOR: Fiódor Dostoiévski
    TRADUÇÃO: Boris Schnaiderman
    EDITORA: 34 (2011, 232 págs., R$ 44)

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    O LIVRO DOS SANTOS *
    Rogério de Campos (Veneta, 368 págs., R$ 39,90)
    O escritor e editor Rogério de Campos compila tentações, suplícios e milagres que perfazem a vida de mais de 250 santos. A mitologia cristã, com suas virgens em êxtase e seus padroeiros decapitados, é vista sob o aspecto exótico, mas o tom é respeitoso e fiel, se não ao credo, pelo menos aos registros históricos.

    Reprodução
    Ilustração de autor anônimo está em "O Livro dos Santos"
    Ilustração de autor anônimo está em "O Livro dos Santos"

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    DOSTOIÉVSKI - FILOSOFIA, ROMANCE E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA **
    Luigi Pareyson; tradução de Maria Helena Nery Garcez e Sylvia Mendes Carneiro (Edusp, 256 págs., R$ 39)
    O filósofo italiano desenvolve aspectos éticos e antropológicos da ficção de Dostoiévski, cujos temas recorrentes (liberdade e rebelião, mal e aviltamento) são vistos como releitura da Sagrada Escritura, sem perder a complexidade literária.

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    DUO **
    Hélène Grimaud e Sol Gabetta (Deutsche Grammophon, R$ 101,90, importado)
    A pianista francesa Hélène Grimaud e a violoncelista argentina Sol Gabetta registram o programa de uma célebre apresentação no Festival Menuhin de 2011, na Suíça. São peças de Schumann, Brahms, Debussy e Chostakóvitch interpretadas com uma intensidade e um entendimento mútuo que prenunciam lugar histórico para esse duo que também prima pela beleza extramusical.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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