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    Manuel da Costa Pinto

    Ressaca de conflitos na ex-Iugoslávia se transforma em orgia em filme

    11/05/2013 22h55

    Emir Kusturica ficou conhecido por uma sequência de três filmes exuberantes na forma e anárquicos no conteúdo. São farsas políticas ambientadas, em parte ou no todo, nas principais cidades da antiga Iugoslávia (Belgrado, Sarajevo e Zagreb): "Você se Lembra de Dolly Bell?" (1981), "Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios" (1985) e "Underground" (1995) --este último, uma obra-prima responsável pelo epíteto de "Fellini dos Bálcãs" atribuído ao diretor sérvio.

    Em "Gato Preto, Gato Branco" (1998), não há comunidade étnica ou localização geográfica que possam servir de metonímia para os conflitos entre sérvios, bósnios e croatas. A ação se passa às margens do Danúbio, num agrupamento caótico de ciganos metidos em pequenas trapaças e grandes negociatas, que incluem falsificação de combustível e tráfico de drogas.

    Da filmografia anterior, sobra o registro dionisíaco atravessado por fanfarras ciganas. Teria esse novo transe de Kusturica um sentido político?

    Divulgação
    O ator Bajram Severdzan em "Gato Preto, Gato Branco", de Emir Kusturica
    O ator Bajram Severdzan em "Gato Preto, Gato Branco", de Emir Kusturica

    Em cena, temos Matko, um cigano que pede ajuda a um mafioso amigo de seu pai (que ele diz estar morto, sensibilizando o chefão) para desviar um carregamento de gasolina, mas é enganado por um traficante cocainômano que, além de dar um golpe no primeiro, quer que o filho do ludibriado se case com sua irmã anã.

    Na cerimônia de casamento, as diferentes fraudes vêm à tona e desencadeiam fugas, perseguições (em alguns momentos, dignas dos Trapalhões...) e bizarras "ressurreições".

    Tudo é grotesco, com ciganos vetustos mordendo charutos entre dentes de ouro e disparando tiros ao alto enquanto os mais jovens (o filho de Matko, sua namorada secreta e a anã prometida) ainda se agarram a idílios amorosos.

    Ao final, após impagável referência a "Casablanca", os créditos exibem os dizeres "happy end" --assim mesmo, em inglês, como a mostrar que, após as "mentiras de guerra" (subtítulo de "Underground") do comunismo e a limpeza étnica dos anos 1990, só restam orgia e clandestinidade para os apátridas da nova ordem econômica.

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    CONEXÕES

    FILME
    GATO PRETO, GATO BRANCO ***
    DIRETOR: Emir Kusturica
    DISTRIBUIÇÃO: Lume (R$ 49,90)

    LIVRO
    CAFÉ TITANIC ****
    Prêmio Nobel de Literatura de 1961, conhecido como "Homero dos Bálcãs", o escritor servo-croata nascido na Bósnia sintetizou, nesses contos, as tensões do barril de pólvora iugoslavo.

    AUTOR: Ivo Ándritch
    TRADUÇÃO: Aleksandar Jovanovíc
    EDITORA: Globo
    (2008, 280 págs., R$ 26)

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    LIVRO
    AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA ***
    Francis Fukuyama; tradução de Nivaldo Montingelli Jr. (Rocco, 592 págs., R$ 69,50)

    Conhecido por ter decretado o fim da história após a queda do comunismo, o pensador norte-americano investiga origens e singularidades das formações políticas, da Revolução Francesa a experiências asiáticas e leste-europeias. A perspectiva liberal inclui biologia evolucionista, com querelas interpretativas que comprovam ser o término da história uma quimera.

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    DISCO
    GÓRECKI - CONCERTO-CANTATA ****
    Filarmônica de Varsóvia (Naxos, R$ 33,60, importado)

    Compositor que resistiu ao formalismo das vanguardas, o polonês Henryk Górecki (1933-2010) é, no entanto, um dos grandes nomes da música moderna, com harmonias densas e dissonantes. Sob regência de Antoni Wit, a pianista Anna Górecka (sua filha) e a flautista Carol Wincenc são solistas num repertório que inclui a primeira gravação mundial do "Concerto-Cantata".

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    Divulgação
    Cena do filme "O Vale das Abelhas", do diretor tcheco Frantisek Vlácil
    Cena de "O Vale das Abelhas", do tcheco Frantisek Vlácil

    FILME
    O VALE DAS ABELHAS ****
    Frantisek Vlácil (Cultclassic, R$ 34,90)

    Na Idade Média, o filho de um senhor feudal se revolta contra o casamento do pai, é banido para uma ordem de cavaleiros religiosos e retorna às origens para uma vingança com conotação incestuosa. O diretor tcheco imprime estética suprematista (os enquadramentos em preto e branco que remetem a Maliévitch) a essa obra-prima de 1967, conduzindo a tragédia com contenção narrativa.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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