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    Manuel da Costa Pinto

    Em 'Django Livre', Tarantino equipara escravidão nos EUA à barbárie nazista

    23/06/2013 02h30

    Variante do "western spaghetti" associada ao tema da escravidão, "Django Livre" confirma aquilo que "Bastardos Inglórios" sugeria: mais do que ampliar as apropriações de gêneros "cult" por Tarantino --a "pulp fiction" (no filme homônimo) ou as artes marciais ("Kill Bill")--, a obra atual do diretor aponta para um revisionismo histórico fantasioso e benigno.

    Em "Bastardos Inglórios", os judeus que castigavam nazistas não apenas mudavam os rumos da Segunda Guerra (dentro do gênero de ficção científica conhecido como "história alternativa" ou "ucronia"). Os truculentos e musculosos soldados liderados por Brad Pitt eram também o avesso do judeu dos estereótipos antissemitas (soturno, recurvado, com o nariz adunco enfiado em livros e complôs).

    Em "Django Livre", Tarantino também se vinga do passado escravista pelas mãos do caçador de recompensas alemão King Schultz (Christoph Waltz), que percorre o sul dos EUA disfarçado de dentista, liberta o escravo Django (Jamie Foxx) e o ajuda a resgatar sua mulher, Hilde.

    Tarantino satiriza os caipiras americanos e a Ku Klux Klan, faz seus justiceiros mostrarem que os homens de bem das cidadezinhas racistas não passam de meliantes comuns --numa exacerbação de violência que culmina nos mandingos (rinhas entre escravos promovidas pelos latifundiários sulistas). Mas o diretor Spike Lee acusou Tarantino de desonrar o passado afroamericano, que compara ao Holocausto, com sua abordagem de faroeste.

    Justamente aí está o busílis. Não é gratuito que o porta-voz da justiça seja um alemão, um avesso do coronel Landa de "Bastardos Inglórios" (vivido pelo mesmo Waltz), que o nome inteiro da heroína negra seja Brunhilde (personagem do ciclo operístico "O Anel do Nibelungo", de Richard Wagner) e que, no momento em que sela o contrato de compra e libertação de Hilde, Schultz peça que a irmã do vilão (Leonardo DiCaprio) interrompa a música de Beethoven que toca à harpa.

    Dentro dessa atmosfera sanguinolenta, os paralelismos entre os dois filmes podem passar despercebidos. O fato é que Tarantino equipara a escravidão à barbárie que germinava na alta civilização alemã e continua latente na América profunda.

    FILME
    DJANGO LIVRE ****
    DIREÇÃO: Quentin Tarantino
    DISTRIBUIDORA: Fox-Sony Pictures Home Entertainment (locação)

    FILMES
    BASTARDOS INGLÓRIOS ****
    A história do grupo de militares judeus que se vingam dos nazistas e mudam o curso da Segunda Guerra iniciou a fase "revisionista" na filmografia de Tarantino.
    DIREÇÃO: Quentin Tarantino
    DISTRIBUIDORA: Universal Pictures (2009, R$ 19,99)

    DJANGO ***
    O filme protagonizado por Franco Nero deu origem a dezenas de continuações com o próprio ator, que faz uma ponta em "Django Livre".
    DIREÇÃO: Sergio Corbucci
    DISTRIBUIDORA: Warner Home Video (1966, locação)

    *

    DISCO
    PIANO PRESENTE ***
    Joana Holanda (Selo Sesc SP, R$ 20)
    Fruto de um trabalho admirável de pesquisa do repertório contemporâneo, a pianista Joana Holanda interpreta peças de compositores com obras já consistentes, como Marisa Rezende, e de autores nascidos entre os anos 1960 e 80, como Rogério Vasconcelos e Gabriel Penido. Esse instantâneo da produção erudita inclui peças para piano preparado, com manipulação eletrônica.

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    LIVRO
    NA LATA - POESIA REUNIDA 1978-2013 ****
    Frederico Barbosa (Iluminuras, 368 págs., R$ 49)
    Nascido em Recife em 1961, mas cedo radicado em São Paulo, Frederico Barbosa desenvolveu obra marcada pelo diálogo com João Cabral de Melo Neto e os concretos. Nessa reorganização de seus livros anteriores, com poemas esparsos e inéditos, a divisão temática amplifica o sentido crítico, existencial, não raro ríspido e sarcástico, de sua contundência formal.

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    FILME
    ASTERIX E OBELIX - A SERVIÇO DE SUA MAJESTADE **
    Laurent Tirard (Paris, locação)
    A quarta adaptação cinematográfica das aventuras do pequeno gaulês e de seu rotundo amigo funde dois dos melhores álbuns da dupla: "Asterix entre os Bretões" e "Asterix e os Normandos". Fica a léguas da genialidade dos criadores da HQ, Goscinny e Uderzo, mas tem Depardieu como Obelix e divertidas participações de Catherine Deneuve e Fabrice Luchini.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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