• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 19:57:14 -03
    Manuel da Costa Pinto

    Política da recusa

    DE SÃO PAULO

    11/08/2013 02h30

    Baseado em "Júlio César", de Shakespeare, e ambientado no cárcere romano de Rebibbia, onde presos participam de montagem da peça, "César Deve Morrer" é o filme político de uma era em que a política se tornou espetáculo.

    Até aí, nenhuma novidade. Não é de hoje que ideologia rima com comunicação de massa (Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, que o diga). A diferença é que os irmãos Taviani colocam como condição da arte a sua não espetacularização.

    O filme começa pelo fim, pela representação de "Júlio César" diante do que se supõe serem os familiares dos presos, dentro da proposta humanista de reabilitar os detentos por narcotráfico e atividades mafiosas (contribui para isso o fato de serem solicitados a interpretar em seus dialetos de origem, reforçando vínculos entre arte e vida). O que veremos em seguida, porém, é uma narrativa em preto e branco (em contraste com o colorido da montagem) em que o laboratório teatral invade os corredores do cárcere, transforma-o em palco.

    A "mise-en-scène" se torna antinaturalista, cada ator selecionado e cada cela participam do concerto de vozes com perfeição implausível num ensaio amador. Nessa inversão, em que o ensaio é a montagem (e o filme), não são os espectadores (ausentes) que realizam a catarse teatral, mas os atores.

    Divulgação
    Cena de "César Deve Morrer", de Paolo e Vittorio Taviani, vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2012
    Cena de "César Deve Morrer", de Paolo e Vittorio Taviani, vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2012

    Essa catarse, todavia, nada tem de redentora. Ao contrário, estabelece uma continuidade dura e clarividente entre o assassinato de César (justificado e desmascarado como sacrifício, na peça de Shakespeare) e a essência criminosa da política esvaziada pela retórica: em "César Deve Morrer", a arte está ao lado daqueles que expiam suas culpas, não no gozo de quem as espia.

    Bem mais naturalista é outro lançamento dos Taviani: "Ressurreição", adaptação televisiva do romance de Tolstói em que um nobre russo, ao participar do júri de uma prostituta acusada de assassinato, descobre que fora o responsável por sua danação. O desejo de redenção (que faz o protagonista reavivar ideais igualitaristas e desafiar o perverso sistema jurídico czarista) esbarra num obstáculo maior: a recusa da mulher ultrajada de sucumbir à reconciliação -recusa que define o cinema dos Taviani.

    Por coincidência, "Anna Karenina", de Joe Wright, com roteiro de Tom Stoppard, associa outro clássico de Tolstói a uma linguagem teatral. Aqui, porém, as interpretações hollywoodianas de Keira Knightley, Jude Law e do fraquíssimo Aaron Taylor-Johnson (como Vronsky, amante de Anna) e os espaços estilizados como palco acabam por reduzir a potência de uma obra-prima que usa o adultério como invectiva contra a frivolidade da qual o próprio filme é expressão.

    LIVROS
    TOLSTÓI - A BIOGRAFIA *
    Essa nova biografia de Tolstói enfatiza o lado filosófico-religioso do escritor russo, não aprofundando a análise literária de seus livros. Das raízes aristocráticas a sua conversão a um cristianismo utópico (que arrebanhou hordas de seguidores e provocou conflitos conjugais), a edição inclui excelente capítulo sobre sua apropriação pela propaganda soviética.
    AUTOR: Rosamund Bartlett
    *TRADUÇÃO: * Renato Marques
    EDITORA Biblioteca Azul
    QUANTO: R$ 69,90 (640 págs.)

    LICOR DE DENTE-DE-LEÃO **
    Morto em 2012, aos 91 anos, Bradbury havia se tornado um clássico ainda em vida. E não apenas pela ficção científica de livros como "Fahrenheit 451" e "Crônicas Marcianas". No romance "Licor de Dente-de-Leão", as experiências de um menino no verão de 1928 são atravessadas por reminiscências sensoriais, fazendo da memória o mais fantástico dos mundos.
    AUTOR: Ray Bradbury
    TRADUÇÃO: Ryta Vinagre
    EDITORA: Bertrand Brasil
    QUANTO: R$ 34 (266 págs.)

    *

    DISCO
    BASS XXI **
    Alexandre Rosa (independente, R$ 25)
    Corrigindo a escassez do repertório para seu instrumento, o contrabaixista da Osesp grava obras que são fruto de diálogo com compositores como Danilo Rossetti e Rael G.B. Toffolo. Interagindo com outros instrumentos ou em interpretação solo, vai do registro grave das cordas a pizzicatos e timbres inusitados, com peças de desconcertante dramaticidade.

    *

    FILMES
    CÉSAR DEVE MORRER **
    DIREÇÃO: Paolo e Vittorio Taviani
    DISTRIBUIDORA: Europa (locação)

    RESSURREIÇÃO **
    DIREÇÃO: Paolo e Vittorio Taviani
    DISTRIBUIDORA: Versátil (R$ 39,90)

    ANNA KARENINA **
    DIREÇÃO: Joe Wright
    DISTRIBUIDORA: Universal (locação)

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024