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    Manuel da Costa Pinto

    "Dentro de Casa" transtorna o gênero dos filmes sobre professor e aluno

    08/09/2013 02h30

    À primeira vista, "Dentro de Casa", de François Ozon, pertence à categoria dos filmes sobre a relação entre professores e alunos, cujos exemplos mais lacrimosos são "Ao Mestre com Carinho" e "Sociedade dos Poetas Mortos", mas que também rendeu os virulentos "A Onda" e "Entre os Muros da Escola".

    O problema desse subgênero é que, em geral, os filmes têm tom edificante, em que a liderança do pedagogo incompreendido termina impondo uma mensagem de emancipação que encerra contradição: mais livre será aquele que melhor emular o mestre --o que até pode ser um método eficaz de ensino, mas leva a uma visão instrumentalizadora da cultura e da arte (aí incluída a arte cinematográfica).

    Divulgação
    Ernst Umhauer (à esq.) e Fabrice Luchini em cena de "Dentro de Casa"
    Ernst Umhauer (à esq.) e Fabrice Luchini em cena de "Dentro de Casa"

    É contra essa derrota da imaginação que vai Ozon. Em cena, o sempre magistral Fabrice Luchini é Germain, professor de francês que lê com nojo indisfarçável as redações de seus iletrados alunos, incapazes de relatar um simples fim de semana (essa é a tarefa da semana) com criatividade.

    Até que Germain topa com a redação de um aluno problemático que descreve, com sarcasmo no limite do sadismo, a visita à casa de um colega abastado. Ao final do texto, Claude (Ernst Umhauer) coloca a indicação "segue". Ou seja, a narrativa prosseguirá como um romance de folhetim.

    Claude se transforma na Sherazade de Germain, que acompanha com avidez e perplexidade os avanços do aluno na vida burguesa do amigo, através de novas redações que já não atendem a propósitos pedagógicos, e sim ao pacto voyeurista entre autor e leitor --ambos se deliciando com aquela perversão da privacidade.

    Como pano de fundo, há uma reforma do ensino em que a adoção do uniforme visa cancelar distinções sociais. A essa medida politicamente correta, Claude responde com narrativas de sedução (da mãe do amigo, do próprio colega) que já não sabemos se são confissão, invenção ou delírio do professor-leitor --mas que, decididamente, são uma vingança da imaginação contra os discursos (e os filmes) pacificadores.

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    DENTRO DE CASA ***
    DIREÇÃO: François Ozon
    DISTRIBUIDORA: California (locação)

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    CONEXÕES

    TEOREMA ****
    Ozon cita o filme do cineasta italiano sobre o elemento estranho que penetra numa ordem familiar, desestabilizando-a pela sedução.
    DIREÇÃO: Pier Paolo Pasolini
    DISTRIBUIDORA: Cult Classic (1968, locação)

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    CACHÉ ****
    O diretor austríaco aborda o tema da invasão da privacidade pelo prisma do ressentimento pós-colonial francês.
    DIREÇÃO: Michael Haneke
    DISTRIBUIDORA: California (2005, locação)

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    LIVROS

    BREVE HISTÓRIA DOS JUDEUS ***
    Michael Brenner; tradução de Marcelo Brandão Cipolla (WMF Martins Fontes, 408 págs., R$ 65)

    "No princípio eram as migrações", escreve o historiador da Universidade de Munique, que encontra na diáspora bíblica e nas dispersões provocadas pelo antissemitismo a chave para compreender a história do povo judeu. Estudo sintético e abrangente, que passa pelo movimento sionista e inclui prefácio de Jeffrey Lesser e Roney Cytrynowicz sobre os judeus no Brasil.

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    FOI NA PRIMAVERA ***
    Angela Nanetti e Roberto Innocenti; tradução de Maurício Santana Dias (Edições SM, 142 págs., R$ 38)

    No leito de morte, Dante Alighieri (1265-1321) relembra para o amigo (e também poeta) Guido Cavalcanti os acontecimentos de sua vida, tendo por centro a visão fugaz de Bice ou Beatriz Portinari --musa eternizada na "Divina Comédia". A edição ilustrada, em capa dura, recria com linguagem romanesca a biografia e o contexto político do fundador da literatura italiana.

    Reprodução/Palazzo Pitti Florence/Alfredo Dagli Orti
    Retrato de Dante Alighieri durante o exílio
    Retrato de Dante Alighieri durante o exílio

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    DISCO

    LIGETI + ****
    Percorso Ensemble (Selo Sesc, R$ 20)

    Sob regência de Ricardo Bologna, o Percorso Ensemble interpreta o "Concerto de Câmara para 13 Instrumentistas", do húngaro György Ligeti (1923-2006), compositor moderno que criou percurso paralelo ao serialismo, com densas texturas e sombrias linhas melódicas. Acompanham a obra-prima peças igualmente notáveis dos brasileiros Marcus Siqueira e Cláudio de Freitas.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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