• Colunistas

    Sunday, 28-Apr-2024 17:46:31 -03
    Manuel da Costa Pinto

    Novo álbum resgata espírito original de Asterix como metáfora da Resistência francesa

    17/11/2013 02h30

    O novo álbum de Asterix é duplamente histórico. É a primeira vez que uma HQ da série não é escrita e desenhada pelos criadores do pequeno gaulês e de seu inseparável companheiro Obelix. Além disso, "Asterix Entre os Pictos" reconduz as aventuras a seu espírito original.

    Comecemos por aí. Poucos leitores mirins percebem que a aldeia litorânea idealizada pelo roteirista Goscinny e imortalizada pelo traço de Uderzo é uma metáfora da França à época da ocupação nazista.

    Mas a página inicial, que se repete em todos os álbuns, com o mapa da Gália (território da atual França à época da expansão de Roma), não deixa dúvidas. Um pequeno quadro informa: "Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor". Eis a chave de leitura: numa França que estendeu o tapete vermelho para as tropas de Hitler, uns minguados resistentes infernizam a vida do inimigo.

    Reprodução
    Imagem do livro "Asterix entre os Pictos", desenhado por Didier Conrad
    Imagem do livro "Asterix entre os Pictos", desenhado por Didier Conrad

    Com a morte de Goscinny em 1977, porém, Uderzo acumulou a função de roteirista e acabou desfigurando a série. Começou com "O Grande Fosso", paródia de "Romeu e Julieta" distante da tradicional sátira ao chauvinismo francês, culminou em "O Dia em que o Céu Caiu", com a constrangedora inserção de extraterráqueos calcados em mangás japoneses.

    Tapetes voadores ("As 1.001 Horas de Asterix") e "gadgets" típicos de 007 ("A Odisseia de Asterix") quebraram o caráter naturalista da aventura --cujo único elemento mágico era a poção do druida Panoramix, que dava força sobre-humana aos gauleses e que na verdade era um placebo, uma metáfora da vontade --conforme se vira em "Asterix entre os Bretões".

    Agora, Jean-Yves Ferri e Didier Conrad (respectivamente, roteirista e desenhista da nova aventura) restauram a ideia de que os irredutíveis gauleses são expressão de uma Europa profunda dividida em tribalismos.

    Em "Asterix entre os Pictos", os heróis ajudam um escocês, que chega à praia da aldeia envolto numa redoma de gelo, a voltar a sua terra natal --onde se digladiam diferentes grupos (cada qual com a pele tingida de uma cor, derivando daí o epíteto latino de "pictos", "homens pintados").

    Por trás das rivalidades pessoais, estão os oportunismos daqueles que se alinham ao invasor --numa história com direito a monstro do lago Ness e ao tradicional banquete final regado a uísque escocês, enquanto um patético recenseador romano tenta entender os movimentos dessa turma ingovernável, que resiste aos imperialismos que volta e meia assolam o Velho Continente.

    LIVRO

    ASTERIX ENTRE OS PICTOS ***
    AUTORES: Jean-Yves Ferri e Didier Conrad
    TRADUÇÃO: Gilson Dimenstein Koatz
    EDITORA: Record (48 págs., R$ 28)

    *

    LIVRO

    ASTERIX E O ESCUDO ARVERNO ****
    Asterix e Obelix escoltam o chefe Abracurcix à região de Auvergne, que foi cenário da derrota dos gauleses diante de Roma e, ironicamente, sediou o governo colaboracionista de Vichy na Segunda Guerra.
    AUTORES: René Goscinny e Albert Uderzo
    TRADUÇÃO: Cláudio Varga
    EDITORA: Record (48 págs., R$ 30)

    *

    FILME

    A TRISTEZA E A PIEDADE ****
    Documentário de 1969 sobre a Resistência e, sobretudo, o colaboracionismo durante a ocupação nazista da França --eterna mancha na autoestima do país.
    DIREÇÃO: Marcel Ophüls
    DISTRIBUIDORA: Videofilmes (locação)

    -

    LIVRO

    ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA
    Alfredo Bosi (Editora 34, 480 págs., R$ 65)
    Reúne ensaios, entrevistas e "intervenções" (aulas, conferências) do professor de literatura e um dos críticos mais importantes da história do país. Sob a diversidade temática (poesia brasileira e pensamento político; Machado de Assis e Graciliano Ramos; Vico e Leopardi) revela-se, mais do que a erudição, a amarração rigorosa de questões estéticas e ideológicas.

    -

    DISCO

    BACH TRANSCRIBED
    Alessio Bax (Signum, importado)
    É comum que peças escritas para cravo por Bach sejam interpretadas ao piano (instrumento posterior à época do compositor alemão). As transcrições interpretadas pelo italiano Bax, porém, vão além desse repertório e incluem arranjos de autores como Busoni e Saint-Saëns para obras com outras formações originais --resultando num Bach noturno e romântico.

    -

    FILME

    O MOINHO E A CRUZ ***
    Lech Majewski (Lume, R$ 37,90)
    Nesta produção polonesa (falada em inglês), o pintor Bruegel (Rutger Hauer) concebe a tela "Procissão para o Calvário" durante a ocupação espanhola dos Países Baixos. E, se a tela funde passado e presente, a Paixão de Cristo e o cotidiano camponês do século 16, o cenário do filme é o quadro, mimetizado com fotografia deslumbrante, mas torna esquemática uma narrativa quase toda visual, que espelha a tensão entre Reforma e Contra-Reforma.

    Divulgação
    Hauer como Bruegel em "O Moinho e a Cruz"
    Hauer como Bruegel em "O Moinho e a Cruz"
    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024