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    Manuel da Costa Pinto

    Em 'Os Possessos', diretor polonês recria a atmosfera apocalíptica de Dostoiévski

    01/12/2013 02h30

    A capa do DVD "Os Possessos" destaca os atores Omar Sharif e Isabelle Huppert. Mas, a rigor, suas personagens são secundárias em relação ao quarteto de diabos, ou pobres diabos, que protagonizam tanto o filme de Andrzej Wajda quanto "Os Demônios" (1871), romance de Dostoiévski que gerou essa adaptação de 1988.

    Em cena, temos um grupo de ativistas políticos numa cidade imaginária do interior da Rússia na segunda metade do século 19. Suas convicções ideológicas, entretanto, acabam embaralhadas numa barafunda de diálogos que mesclam anarquismo e socialismo utópico.

    De um lado, temos o niilista libertino Stavróguin (Lambert Wilson), que retorna do exílio e é adorado pelo calculista e manipulador Vierkhoviénski (Jean-Philippe Écoffey). A eles se contrapõem dois ex-integrantes da célula revolucionária: Chátov (Jerzy Radziwilowicz), convertido em nacionalista que crê na missão evangelizadora da Rússia, e Kirílov (Laurent Malet), ateu de alma torturada, que desde o início anuncia seus desígnios suicidas.

    Divulgação
    Jutta Lampe em cena de "Os Possessos", do diretor polonês Andrzej Wajda
    Jutta Lampe em cena de "Os Possessos", do diretor polonês Andrzej Wajda

    No romance, como no filme, o que está em questão não é apenas a utopia política, mas o modo como construções abstratas, que apontam para sistemas totalitários, se transformam primeiramente em paixões para, em seguida, derivarem para deformidades morais em que aquilo que foi recalcado (as contradições do homem concreto, com seus impulsos ambíguos de justiça e egoísmo) retorna na forma de crime e sadomasoquismo.

    A direção de atores de Wajda é notável, com uma teatralidade que beira o excessivo e faz jus à atmosfera apocalíptica do escritor russo --culminando na magnífica cena do incêndio da cidade. E, assim como na obra-prima "Danton" (1983), o diretor faz do passado um espelho da Polônia sob governo comunista. Ou seja, faz ver como sob as frias razões de Estado (aqui convertidas em paródia grotesca dos grupos radicais) estão pulsões destrutivas de dominação e humilhação.

    Ao mesmo tempo, ele consegue extrair dos sentimentos mais acanalhados e das ações mais bestiais uma aflição espiritual que provoca nossa empatia com esses divinos celerados. Talvez seja essa a marca de grandes artistas como Dostoiévski e Wajda: ao defenderem o homem real e suas ambivalências, acabam idealizando-o, por força de uma compaixão que também não deixa de ser utópica.

    FILME

    Os Possessos ****
    DIRETOR: Andrzej Wajda
    DISTRIBUIDORA: Versátil (R$ 44,90)

    *

    LIVRO

    Os Demônios ****
    Baseado em episódio real do assassinato de um estudante por grupo revolucionário russo, traz os fantasmas de Dostoiévski, condenado à prisão na Sibéria sob acusação de conspirar contra o czar.
    AUTOR: Fiódor Dostoiévski
    TRADUÇÃO: Paulo Bezerra
    EDITORA: 34 (2004, 704 págs., R$ 86)

    *

    FILME

    Crime e Castigo ****
    Produção soviética a partir do romance de Dostoiévski em que um estudante comete assassinato para provar sua superioridade moral.
    DIRETOR: Lev Kulidzhanov
    DISTRIBUIDORA: Coleção Folha Grandes Livros no Cinema (2013, R$ 17,90, p/ site folha.com.br/livrosnocinema ou p/ tel. 3224-309)

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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