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    Manuel da Costa Pinto

    Estandartes medievais

    DE SÃO PAULO

    02/02/2014 02h30

    No final dos anos 1920, os historiadores franceses da Escola dos Annales promoveram uma reviravolta nos estudos do passado. Em diálogo com disciplinas como a antropologia e privilegiando a "longa duração" dos fenômenos sociais (práticas econômicas cotidianas, religião, costumes), historiadores relativizaram os momentos de grandes rupturas (descobrimentos, cismas, revoluções) e o papel de seus protagonistas.

    Não deixa de ser surpreendente, portanto, que Jacques Le Goff, principal herdeiro de Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, tenha organizado "Homens e Mulheres da Idade Média", lançado no Brasil pouco após sua edição original, num volume em capa dura ricamente ilustrado.

    British Library/AKG/Latinstock/Divulgação

    Como indica o título, temos um cortejo de 112 personagens que incluem reis, papas, teólogos, santas e líderes de insurreições populares, além de nomes do campo da criação como os pintores Giotto e Fouquet, os poetas Dante e Chaucer e o músico Gui d'Arezzo (inventor da notação musical no século 11).

    No prefácio ao livro (com mais de 40 colaboradores), Le Goff explica que essas figuras célebres são apresentadas como "estandartes que falariam sobre uma sociedade e uma época (...) na qualidade de reveladores de seu tempo e heróis da memória histórica" — o que está em consonância com um princípio historiográfico no qual os sujeitos são emblemas de lentas mutações.

    Assim, Clóvis (primeiro monarca cristianizado da França) aparece menos como um novo advento político e mais como fruto do investimento sagrado na figura do rei, "então um fenômeno essencialmente oriental" vilipendiado pela tradição cívica romana. Da mesma maneira, Cristovão Colombo é visto como um "homem tipicamente medieval", até o final da vida ignorante de seu achado (o Novo Mundo), e não como fundador do Renascimento.

    Numa obra pertencente ao âmbito da "história das mentalidades", o precioso capítulo final traz figuras do imaginário medieval, como o rei Arthur, o aventureiro Robin Hood e a "papisa Joana" — uma mulher que teria subido ao trono pontificial travestida de homem, sendo desmascarada ao dar à luz durante uma procissão. Que durante muito tempo essa lenda tenha sido reconhecida pela igreja é mais um exemplo de como Le Goff dissocia a Idade Média da imagem da "idade das trevas".

    LIVRO

    HOMENS E MULHERES DA IDADE MÉDIA – ótimo
    AUTOR: Jacques Le Goff (org.)
    TRADUÇÃO: Nícia Adan Bonatti
    EDITORA: Estação Liberdade (448 págs.; R$ 115)

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    LIVROS

    DICIONÁRIO TEMÁTICO DO OCIDENTE MEDIEVAL – ótimo
    Obra de referência, cujos verbetes englobam temas como as cidades medievais, os flagelos, os milenarismos e a sexualidade.
    AUTORES: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt
    TRADUÇÃO: Hilário Franco Júnior (coord.)
    EDITORA: Edusc (2002; 1.314 págs.; 2 vols.; R$ 141,90)

    ARTE E BELEZA NA ESTÉTICA MEDIEVAL – ótimo
    Le Goff considera "emocionante" este livro em que o medievalista italiano mostra como surge a "noção cristã de beleza", no século 13.
    AUTOR: Umberto Eco
    TRADUÇÃO: Mario Sabino
    EDITORA: Record (2010, 368 págs., R$ 50)

    LIVRO

    PENSAMENTO ALEMÃO NO SÉCULO 20 - VOL. 3 – ótimo
    Último volume da trilogia de ensaios que analisa pensadores alemães do século passado e de inícios do 21. Se, nos títulos anteriores, apareciam sobretudo filósofos, aqui há presença maior de artistas: escritores como Kafka e Thomas Mann, a coreógrafa Pina Bausch e os compositores Schoenberg e Stockhausen, além da arquitetura da Bauhaus e do cinema expressionista.
    AUTORES: Jorge de Almeida e Wolfgang Bader (org.)
    EDITORA: Cosac Naify/Instituto Goethe São Paulo (224 págs.; R$ 45)

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    DISCO

    BEETHOVEN: SYMPHONIEN Nº 3 & 4 – ótimo
    Filarmônica de Berlim; regência de Claudio Abbado (Deutsche Grammophon, importado)
    Morto no mês passado, aos 80 anos, Claudio Abbado foi homenageado com uma execução da "Marcha Fúnebre" da "Sinfonia nº 3", de Beethoven, no Teatro Scalla de Milão. Nesta gravação de 2000, lançada agora, o próprio maestro italiano conduz essa obra e a "Sinfonia nº 4": o encontro da genialidade com a perfeição consola a perda do maior regente de nosso tempo.
    ARTISTA: Filarmônica de Berlim (regência de Claudio Abbado)

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    FILME

    O SOM AO REDOR – regular
    Kleber Mendonça Filho (2012, Vitrine Filmes, R$ 39,90)
    Filme um tanto supervalorizado, que se insere no prolífico cenário do atual cinema pernambucano. Num bairro de classe média do Recife, a chegada de seguranças privados faz aflorarem ressentimentos passados, que se atam à mesquinharia cotidiana. A narrativa asfixiante acaba sendo redutora, com personagens planas que só estão ali para propiciar a denúncia realista.

    Divulgação
    Cena do filme 'O Som ao Redor', de Kleber Mendonça Filho
    Cena do filme 'O Som ao Redor', de Kleber Mendonça Filho
    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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