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    Manuel da Costa Pinto

    Coletânea de ensaios russos traz paralelos com identidade brasileira

    DE SÃO PAULO

    09/03/2014 02h30

    O título um tanto austero, "Antologia do Pensamento Crítico Russo (1802-1901)", sugere um livro destinado apenas a pesquisadores. Mal se abrem as páginas dessa reunião de ensaios, cartas e intervenções públicas de escritores e pensadores, porém, encontramos a Rússia no que ela oferece de luminoso e lúgubre, de utópico e infernal.

    Não é de hoje que a literatura russa se tornou um fenômeno editorial no Brasil, com traduções feitas do idioma original. Mas, até agora, eram pouquíssimo conhecidos os trabalhos não ficcionais dos ficcionistas. E, sem essa dimensão reflexiva, que conferiu a Dostoiévski e Tolstói o estatuto de profetas, a literatura russa se torna incompreensível.

    Os autores de, respectivamente, "Os Irmão Karamázov" e "Anna Kariênina" (dois romances com exaustivas discussões sobre os destinos da Rússia), aparecem aqui ao lado de Púchkin, Gógol e de nomes menos difundidos, como o historiador Nikolai Karamzin, o ensaísta Aleksandr Herzen ou os críticos literários Vissarion Bielínski e Nikolai Tchernichévski.

    Vasily Perov/Divulgação
    Livro reúne obras de Dostoiévski e outros escritores
    Livro reúne obras de Dostoiévski e outros escritores

    O organizador, Bruno Barretto Gomide, professor de literatura russa na USP, já havia publicado uma "Nova Antologia do Conto Russo" e é autor de amplo estudo sobre o impacto dessa literatura no Brasil, "Da Estepe à Caatinga" (Edusp). Em seu brilhante prefácio, ele nota os paralelismos entre os dois países, entre a discussão sobre a identidade nacional e a formação de um sistema literário brasileiro (presente em Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Antonio Candido) e as diatribes entre ocidentalistas e eslavófilos, que varreu o império czarista.

    A própria percepção da Rússia como um lugar "fora do tempo" (na perturbadora carta filosófica de Tchaadáiev) e de sua "intelligentsia", dilacerada entre valores universalizantes e uma sociedade baseada na servidão, remete à impotência do intelectual brasileiro, que formula mitos para se conciliar com o legado escravista -mitos que encontram um espelho na casa grande e na senzala russas.

    LIVROS

    ANTOLOGIA DO PENSAMENTO CRÍTICO RUSSO (1802-1901) ****
    ORGANIZADOR: Bruno Barretto Gomide
    TRADUÇÃO: vários
    EDITORA: 34 (608 págs., R$ 76)

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    NOVA ANTOLOGIA DO CONTO RUSSO (1792-1998) ****
    Coletânea abrangente, que vai da idade de ouro da prosa russa (Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov) à era soviética, chegando aos contemporâneos.
    ORGANIZADOR: Bruno Barretto Gomide
    TRADUÇÃO: vários
    EDITORA: 34 (2011, 648 págs., R$ 79)

    OS ESCOMBROS E O MITO ****
    O decano da literatura russa no Brasil discute a arte e as questões filosóficas que ficaram latentes sob o regime comunista.
    ORGANIZADOR: Boris Schnaiderman
    EDITORA: Companhia das Letras (1997, 306 págs., R$ 52)

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    FILME

    OS AMANTES PASSAGEIROS **
    Pedro Almodóvar (Paris Filmes, R$ 29,90)
    Assim como Woody Allen, Almodóvar muitas vezes conta com a boa vontade antecipada do público, graças ao currículo. Nesse filme que se passa nas alturas, dentro de um avião, mas que corresponde a um de seus momentos mais baixos, temos uma mescla de "Gaiola das Loucas" com "Apertem os Cintos... o Piloto Sumiu". Só para fãs do desvairado diretor espanhol.

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    DISCO

    FALANDO BRASILEIRO ***
    Quinta Essentia Quarteto (Kalamata, R$ 25)
    O quarteto de flautas doces apresenta um repertório de composições originais para o instrumento (como as de Bruno Kiefer e Eduardo Escalante) e de arranjos para peças de autores como Guerra Peixe e Tom Jobim. Entre o erudito e o popular, o repertório permite explorar a modernidade de um timbre normalmente associado à música renascentista e barroca.

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    LIVRO

    ENSAIOS DE TEODICEIA ****
    G.W. Leibniz (tradução de William de Siqueira Piauí e Juliana Cecci Silva) (Estação Liberdade, 488 págs., R$ 79)
    Como um Deus onipotente e piedoso pôde permitir a existência do mal, do pecado e da miséria? Esse antigo problema teológico é abordado aqui pelo filósofo alemão, que em 1710 utilizou o termo "teodiceia" para investigar o encadeamento necessário entre as verdades da fé e da razão, entre as noções de tempo, espaço e livre-arbítrio, numa "justificação" de Deus.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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