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    Manuel da Costa Pinto

    Filmes de Garrone e Bellocchio refletem agressividade da imagem midiática

    23/03/2014 02h30

    "Reality - A Grande Ilusão", de Matteo Garrone, é uma sátira ao "Big Brother" italiano. "A Bela que Dorme", de Marco Bellocchio, aborda o tema da eutanásia, a partir de um fato que inflamou a opinião pública da Itália. Vistos na sequência, os dois filmes de 2012 são mais que isso: uma reflexão sobre o ser, o parecer, o aparecer e o perecer.

    No longa de Garrone (que também dirigiu "Gomorra"), Luciano é um vendedor de peixes napolitano cuja mulher faz trambiques de telemarketing. De saída, somos apresentados a um momento em que a rede de microempresários e artesãos, durante muito tempo responsável pela vivacidade da economia italiana, sucumbe à rede de especulação financeira e corrupção política que contaminou todos os estratos sociais do país. E aqui vale notar que o ator que protagoniza o filme, Aniello Arena, é um detento por crimes da Camorra.

    Reprodução
    Filmes de Garrone e Bellocchio refletem agressividade da imagem midiática
    Cena de "Reality - A Grande Ilusão

    Durante festa de casamento animada por um vencedor do "Grande Fratello" (o BBB peninsular), Luciano é incentivado pelos filhos a passar pelos testes de admissão no programa. A partir daí, cai em delírio, enxerga em cada pessoa próxima um espião da emissora averiguando seu perfil.

    De simplório peixeiro, Luciano transforma-se num alienado à espera da notícia de que vai entrar na tal casa. Mais que a ruína familiar (ele acredita tanto no sonho que vende sua peixaria), há uma ruína moral: ele passa a tratar bem os clientes e os mendigos não mais por gentileza natural, mas como um artifício para parecer digno do "Grande Fratello".

    Perto da cenografia brutalmente cafona de Garrone (contraponto ao espetáculo televisivo da política italiana), o filme de Bellocchio é sóbrio, dramático. Os vários núcleos giram em torno do caso Eluana Englaro, que passou 17 anos em estado vegetativo e gerou projeto de lei legalizando a eutanásia.

    Em cena, um senador (Toni Servillo, de "A Grande Beleza") que deve votar contra sua consciência e contra a militância da filha católica, que se apaixona por um ativista pró-eutanásia; uma atriz (Isabelle Huppert) que vela a filha entubada e uma viciada cujas tentativas de suicídio são evitadas pelo plantonista de um hospital.

    Todos estão imersos numa austera vigília, mas Bellocchio realça um elemento deformador: passeatas para câmeras de TV, um depoimento oportunista de Berlusconi e a cena emblemática em que, na fictícia sauna do Senado (referência às antigas sátiras romanas), os tribunos reduzem a moral ao comércio de conveniências.

    Entre o grotesco e o ético, os dois filmes fazem da triunfante imagem televisiva uma expressão daquilo que o filósofo italiano Mario Perniola denominou agressão "mass midiática".

    Reprodução
    Isabelle Huppert, em cena do filme "A Bela que Dorme"
    Isabelle Huppert, em cena do filme "A Bela que Dorme"

    FILMES

    REALITY - A GRANDE ILUSÃO ***
    DIREÇÃO: Matteo Garrone
    DISTRIBUIDORA: Europa (R$ 29,90)

    A BELA QUE DORME ***
    DIREÇÃO: Marco Bellocchio
    DISTRIBUIDORA: California (R$ 39,90)

    A BELA QUE DORME ***
    DIREÇÃO: Marco Bellocchio
    DISTRIBUIDORA: California (R$ 39,90)

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    LIVROS

    TEORIA DA LITERATURA - TEXTOS DOS FORMALISTAS RUSSOS ****
    Org. Tzvetan Todorov; tradução de Roberto Leal Ferreira (Unesp, 367 págs., R$ 52)
    Se o século 20 foi a "idade do ouro" na teoria literária (com várias correntes), os formalistas russos responderam pela ambição de fazer uma "ciência da arte poética", procurando detectar o núcleo duro da linguagem literária. Herdeiro dessa tradição, o búlgaro Todorov reúne aqui textos fundamentais de autores como Iakobson, Chklósvki e Tinianov.

    O RETORNO DO REAL ****
    Hal Foster; tradução de Célia Euvaldo (Cosac Naify, 224 págs., R$ 49)
    O ensaísta nova-iorquino investiga as perplexidades da crítica diante da produção das artes visuais a partir dos anos 1960. Examina os modelos formalistas e sociológicos de interpretação da neovanguarda (minimalismo, arte conceitual, performance) com uma abordagem que inclui referências do pensamento marxista da Escola de Frankfurt e da psicanálise lacaniana.

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    DISCO

    FUNKY JAZZ MACHINE ***
    Tuto Ferraz (Tratore, R$ 22,90)
    Em clima de gravação ao vivo, acompanhado por piano, sax, guitarra e baixos, o baterista Tuto Ferraz apresenta seis composições próprias. O swing melódico funde samba e gafieira sob predomínio do jazz mais clássico, incluindo momentos em que podemos ouvir uma espécie de versão "cool" de uma "big band".

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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