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    Manuel da Costa Pinto

    Diretor explora atritos entre ficção e história ao retratar conflito na Argélia

    17/08/2014 02h00

    Lançado em 1966, quatro anos após a independência da Argélia, "A Batalha de Argel" é o maior clássico do cinema político, tendo arrebatado o Leão de Ouro do Festival de Veneza. Mas o filme de Gillo Pontecorvo não está a salvo de questionamentos.

    Até então, o diretor italiano havia realizado vários documentários e "Kapò" (1959) —longa sobre o Holocausto que causou polêmica na revista francesa "Les Cahiers du Cinéma": sua maneira de filmar uma cena de suicídio, com um "travelling" maneirista na cena em que a personagem se joga contra a cerca elétrica do campo de concentração nazista, foi considerada "abjeta" em artigo do cineasta Jacques Rivette, por dramatizar um horror que impunha linguagem sóbria.

    Divulgação
    Cena do filme "A Batalha de Argel" (1966), do diretor italiano Gillo Pontecorvo
    Cena do filme "A Batalha de Argel" (1966), do diretor italiano Gillo Pontecorvo

    É bom ter em mente tal acusação de formalismo ao ver "A Batalha de Argel". Pois esse filme sobre a resistência argelina ao colonizador francês lança mão de procedimentos repletos de ambiguidades.

    A estética do filme —observa José Carlos Avellar no encarte da edição— traz fotografia em preto e branco e textura granulada, conferindo à película um tom de documentário ou cinejornal. E os intérpretes não são atores, mas argelinos comuns que viveram aqueles dias de violência incomum —dentre eles, Saadi Yacef, que interpreta a si mesmo como membro da Frente de Libertação Nacional e autor do livro que serviu de base ao roteiro.

    Isso contribui para a aura de autenticidade do filme. No entanto, estamos diante de uma narrativa que aposta nos atritos entre ficção e história para produzir seu relato sobre a gênese da guerra suja na Argélia.

    Da primeira cena, em que um homem esquálido é torturado por militares franceses, ao momento em que os colonizados reagem deixando bombas em lugares públicos, gerando uma repressão brutal, "A Batalha de Argel" registra com cortes abruptos o esgar de temor e ódio dos resistentes, humanizando um terrorismo criminoso e injustificável.

    E se o recorte temporal para naquilo que parece ser mais um momento de derrota dos militantes argelinos, a cena final descreve a sublevação que levaria à libertação —um levante inesperado, que talvez só a linguagem ficcional de Pontecorvo consiga captar, com sua eficiente retórica épica.

    A BATALHA DE ARGEL * * * *
    DIRETOR: Gillo Pontecorvo
    DISTRIBUIDORA: Instituto Moreira Salles (R$ 44,90)

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    CONEXÕES

    FILME

    KAPÒ – UMA HISTÓRIA DO HOLOCAUSTO * * *
    História de uma jovem judia que compactua com os nazistas para sobreviver num campo de concentração.
    DIRETOR: Gillo Pontecorvo
    DISTRIBUIDORA: Vintage (1959, R$ 39,90)

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    LIVRO

    OS CONDENADOS DA TERRA * * *
    Com prefácio de Sartre, essa bíblia do anti-colonialismo foi uma das fontes de Pontecorvo.
    AUTOR: Frantz Fanon
    TRADUÇÃO: Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães
    EDITORA: UFJF (2006, 400 págs., R$ 50)

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    FILME

    IMAGENS DO VELHO MUNDO * * * *
    Dusan Hanák (Lume, R$ 44,90)
    Esse documentário eslovaco de 1972 pertence ao formidável cinema que floresceu na ex-Tchecoslováquia. Alternando imagens filmadas e fotografias de seu conterrâneo Martin Martincek, Hanák apresenta relatos de anciãos do interior do país (alguns com mais de cem anos) numa linguagem estática que emula esse universo de camponeses que resistem à passagem do tempo.

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    LIVRO

    UM LANCE DE DADOS * * * *
    Stéphane Mallarmé; tradução de Álvaro Faleiros (Ateliê, 104 págs., R$ 40)
    Publicado em 1897, o poema de Mallarmé é um marco da literatura moderna, com uma espacialidade que influenciou a poesia concreta. É justamente com a célebre tradução de Haroldo de Campos que esta edição dialoga, propondo outras soluções e outros enfoques críticos do simbolista francês -conforme lemos nos prefácios do ensaísta Marcos Siscar e do tradutor.

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    DISCO

    RESPIGHI: IMPRESSIONI BRASILIANE/LA BOUTIQUE FANTASQUE * * *
    Filarmônica Real de Liège; John Neschling, regente (BIS, R$ 142, importado)
    O italiano Respighi compôs o tríptico "Impressioni Brasiliane" após visita ao Brasil, em 1927. Entre a luxuriante "Notte Tropicale" e o "finale" de ritmo latino, "Butantan" ocupa a sinuosa seção central, inspirada no serpentário paulista e com citação da "Sinfonia Fantástica", de Berlioz. Completa a gravação o balé "La Boutique Fantasque", sobre temas de Rossini.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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