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    Manuel da Costa Pinto

    Livro francês premiado ironiza atrocidades coloniais

    21/12/2014 02h00

    Em "A Queda", novela de Camus sobre culpa e omissão, o protagonista imagina como historiadores do futuro definiriam o homem contemporâneo: "fornicava e lia jornais". É mais ou menos isso que faz o narrador de "A Arte Francesa da Guerra", de Alexis Jenni: no início do romance, ganhador do prêmio Goncourt de 2011, ele passa os dias sob o edredom, fornicando com a namorada e assistindo a notícias sobre a Guerra do Golfo nos telejornais.

    O personagem anônimo de Jenni é um malandro de Lyon que falsifica atestados médicos para faltar ao trabalho. Mas é um preguiçoso culpado e clarividente. Sabe que o estado de bem-estar social que garante seu ócio improdutivo se fez à custa das atrocidades coloniais que culminaram, em 1991, na participação do Exército francês na invasão do Iraque.

    Ao perder o emprego, ele conhece o pintor Victorien Salagnon, veterano da Resistência durante a Segunda Guerra, mas também das guerras sujas da Indochina e da Argélia. Em troca de aulas de desenho, o narrador passa a contar a história do ex-oficial paraquedista, membro da temível divisão responsável por criar as modernas técnicas de tortura descritas pelo filme "A Batalha de Argel".

    Disposto em capítulos que trazem o título "Romance" e um subtítulo, o relato das razias no Vietnã francês e no Magreb é entremeado por "Comentários" em que o narrador descreve seu mal-estar crescente nos encontros com Salagnon e seus amigos de armas —como Mariani, cujo discurso xenófobo faria corar o líder de extrema-direita Jean-Marie Le Pen.

    "A toupeira canibal da violência francesa rastejava sob meus passos sem se mostrar", escreve ele. "A Arte Francesa da Guerra", além de romance sobre o colonialismo, fala do efeito colateral da perda da memória do horror.

    Com suas reflexões ensaísticas, recheadas de ironia sobre os fracassos militares de seu país e sobre o abuso do poder policial nas periferias de Lyon, é ainda um romance sobre o "gênio francês" que depositou na língua sua identidade cultural, mas que inocula na abstração da linguagem o ódio aos imigrantes: "No país da doçura de viver e da conversa como uma das belas-artes, não queremos mais viver juntos".

    LIVRO

    A ARTE FRANCESA DA GUERRA ***
    Autor: Alexis Jenni
    Tradução: Eduardo Brandão
    Editora: Companhia das Letras (2014, 544 págs., R$ 69,50)

    *

    FILME

    A BATALHA DE ARGEL ****
    Clássico do cinema político do diretor italiano expõe métodos de repressão e tortura dos franceses na Argélia.
    Diretor: Gillo Pontecorvo
    Distribuidora: Instituto Moreira Salles (1966, R$ 44,90)

    LIVRO

    O SERMÃO SOBRE A QUEDA DE ROMA ****
    Também vencedor do Goncourt, o romance descreve a agonia pós-colonialista tendo como pano de fundo o sermão de Santo Agostinho sobre o fim do Império Romano.
    Autor: Jérôme Ferrari
    Tradução: Samuel Titan Junior
    Editora: 34 (2013, 208 págs., R$ 42)

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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