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    Manuel da Costa Pinto

    Adaptação para HQs de Albert Camus ganha personagens e cenas

    18/01/2015 02h00

    Roland Barthes descreveu "O Estrangeiro", romance de Albert Camus publicado em 1942, como "mito da consciência desterrada". É uma definição certeira, que capta bem a oscilação entre "o natural e o inverossímil" da obra camusiana (a expressão aparece tanto em "O Estrangeiro" quanto em "A Peste", de 1947, que faz de uma epidemia em Orã, na Argélia, a metáfora da ocupação nazista).

    A história do protagonista Meursault é quase banal: funcionário de escritório em Argel, ele assiste com apatia ao enterro da mãe, vai ao cinema com uma amiga com quem inicia um "affair", se envolve no caso de vingança passional do vizinho de má reputação e, por conta disso, como que levado pelo acaso, mata um árabe na praia "por causa do Sol" (como dirá durante seu julgamento).

    Tudo é descrito pelo próprio personagem de modo neutro, distante –e isso faz com que o livro imprima no banal uma fatalidade mítica. Vem daí a dificuldade de levar "O Estrangeiro" para outras linguagens, como ocorre na versão em quadrinhos de Jacques Ferrandez.

    Nascido em Argel, no mesmo bairro de subúrbio, Belcourt, em que Camus cresceu, o desenhista alterna o traço nítido de personagens e ambientes com aquarelas que flagram à perfeição a atmosfera portuária da cidade.

    Mas, assim como ocorria no filme de Visconti, dar rosto a Meursault significa quebrar seu estranhamento de si e aquela voz impessoal que faz com que a narrativa em primeira pessoa se "desnaturalize".

    Ferrandez assume isso e descreve a cena do assassinato na praia sem utilizar as palavras em que, no clímax mítico do romance, "o fogo solar funciona com o rigor da Necessidade antiga" (Barthes).

    Em contrapartida, faz acréscimos inteligentes, como um dono de restaurante com a cara de Faulkner (um dos escritores preferidos de Camus) ou o jornalista vesgo que cobre o julgamento de Meursault e tem as feições de Sartre (autor do melhor ensaio sobre "O Estrangeiro" e amigo que romperia com Camus por razões políticas).

    A melhor inoculação é imaginar, já que o romance não diz, qual seria o filme de Fernandel que Meursault vê com a namorada: "Le Schpountz", de Marcel Pagnol, em que o ator faz variações cômicas sobre o tema da decapitação, antecipando o destino de Meursault. São piscadelas de olho que dão sabor a uma "graphic novel" que se lê com prazer, mas aquém do enigmático naturalismo de "O Estrangeiro".

    LIVRO/HQ

    O Estrangeiro ***
    Autor: Jacques Ferrandez
    Tradutora: Carol Bensimon
    Editora: Quadrinhos na Cia./Companhia das Letras (2014, 144 págs., R$ 54,90)

    LIVRO

    O Estrangeiro ****
    Primeiro romance de Camus, explora os temas do absurdo e da gratuidade que também atravessam sua obra teatral e ensaística.
    Autor: Albert Camus
    Tradutora: Valerie Rumjanek
    Editora: Record (1997, 128 págs., R$ 39)

    FILME
    O Estrangeiro **
    Adaptação de 1967 de Visconti, com Mastroianni no papel de Meursault. Inexistente em DVD e fora de catálogo, pode ser encontrada no canal YouTube em cópia com legendas em português.
    Diretor: Luchino Visconti

    LIVRO

    A Irreligião do Futuro ****
    Jean-Marie Guyau; tradução de Mauro Baladi e Regina Schöpke (Martins, 864 págs., R$ 79,80)
    Admirado por Nietzsche, o pensador francês Jean-Marie Guyau (1854-1888) vê na religião um fenômeno que estende o sentimento de sociabilidade à universalidade dos seres "reais e viventes" e dos "possíveis e ideais". Nessa perspectiva sociológica, vislumbra uma "irreligião" futura que não consiste em negar o "cósmico", mas em lidar com ele sem os dogmas das religiões tradicionais.

    DISCO

    Music for Heart and Breath ***
    Richard Reed Parry (Deutsche Grammophon, R$ 94,90, importado)
    Integrante da banda Arcade Fire, o multi-instrumentista e compositor canadense Richard Reed Parry mostra sua veia erudita num disco camerístico com diferentes intérpretes —entre eles o Kronos Quartet, para o qual escreveu uma das peças. Em comum entra as obras, uma pulsação rítmica que cria melancólicas derivas sonoras dentro de um registro que remete ao minimalismo.

    FILME

    O Vento lá Fora **
    Marcio Debellian (Biscoito Fino, R$ 42,90)
    Depois da participação na Flip em que leram poemas de Fernando Pessoa (1888-1935), a cantora Maria Bethânia e a professora Cleonice Berardinelli fizeram esse registro em estúdio. Com bela fotografia em preto e branco e momentos de bom humor, em que a crítica literária "corrige" a interpretação da deslumbrada parceira, o filme entrega uma versão açucarada do poeta português.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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