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    Manuel da Costa Pinto

    Maestro venezuelano rege sinfonia mais onírica de Gustav Mahler

    01/02/2015 02h00

    Considerado com justiça um prodígio da regência, o venezuelano Gustavo Dudamel, 34, pode estar à frente, com igual talento, da mítica Filarmônica de Berlim ou da Simón Bolívar —orquestra jovem que derivou de El Sistema, vasto programa de ensino público musical implantado em seu país em 1975 (e do qual o próprio maestro é fruto).

    Teatral, no limite do histriônico, Dudamel inflama de tal maneira os músicos que qualquer gravação transpira essa empolgação. Críticos podem até fazer avaliações desabonadoras, ao compará-las com registros de lendas como Karajan, Bernstein ou Abbado. Mas o pulso de um maestro é sempre uma escolha interpretativa —que, no seu caso, inclui um repertório nada óbvio, como é o caso da menos afamada das sinfonias de Mahler: a "Sétima".

    O compositor austríaco (1860-1911) foi quem melhor aproveitou a ampliação do gênero trazida pela "Nona", a sinfonia "coral" de Beethoven. Mahler se manteve na estrutura sinfônica, mas também lançando mão, como na "Segunda" e na "Quarta", de coros e cantores solistas —não para fazer "música programática" (a ilustração orquestral de enredos literários, tão em voga no romantismo de Berlioz ou Liszt), mas para atingir um território expressivo entre a música "absoluta", pura, e o arquétipo abstrato, depurado de figuras mitológicas.

    Miguel Gutiérrez/Efe
    Dudamel em apresentação com a orquesta, em Paris
    Dudamel em apresentação com a orquesta, em Paris

    Na "Sétima", estreada em 1908, temas anteriores, como o do herói ("Sinfonia Nº 1 - Titã") ou o da "Ressurreição" (subtítulo da "Sinfonia Nº 2") dão lugar a um mundo de profundezas interiores que não seria exagero qualificar de pulsional (vale lembrar que o atormentado Mahler chegou a se consultar com Freud).

    Com cinco movimentos (em lugar dos quatro convencionais), a "Sétima" se abre em forma-sonata, dentro do padrão expositivo clássico. Logo percebemos, contudo, um fluxo labiríntico (enfatizado pela condução compassada de Dudamel) que deságua nas seções centrais.

    Nestas, há duas partes intituladas "Nachtmusik" (música noturna). No segundo movimento, escalas cromáticas descendentes se abrem para uma marcha com o rumor longínquo de sinos pastoris, que são como o reencontro do viandante romântico com a aldeia perdida. E, no quarto, violão e bandolim produzem um efeito mediterrâneo defendido com virtuosismo pelos solistas latinos da Sinfônica Simón Bolívar: mais do que música noturna, é música aquática, cantilenas dissolvidas nos oníricos canais venezianos.

    A seção central, uma arrebatadora dança macabra, mostra o que há de irônico nessa obra em que fábula e fanfarra, noite e catarse, fazem a passagem da sinfonia clássica e romântica para as deformidades modernas do "Finale" —um rondó abrupto e cíclico como as camadas de um sonho.

    DISCO

    MAHLER: SYMPHONY Nº 7 ****
    ARTISTAS: Gustavo Dudamel e orquestra Sinfônica Simón Bolívar
    GRAVADORA: Deutsche Grammophon (R$ 136,30, importado)

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    LIVRO

    KAPUTT ****
    Eloar Guazzelli Filho (WMF Martins Fontes, 184 págs., R$ 59)
    O quadrinista gaúcho Eloar Guazzelli Filho adapta o livro do italiano Curzio Malaparte (1898-1957), uma série de cenas colhidas nas zonas de operação da Segunda Guerra Mundial. A linguagem visual sombria e entrecortada reproduz à perfeição o caráter rapsódico da obra, que identifica no medo diante do outro o motor da guerra e reduz algozes e vítimas à condição de animais.

    INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS ****
    Erich Auerbach; tradução de José Paulo Paes (Cosac Naify, 148 págs., R$ 59,90)
    Escritos em francês em 1943, durante o exílio do "scholar" alemão na Turquia, estes textos se destinavam a alunos da Universidade de Istambul. Sob a clareza didática está uma monumental erudição que encontra na análise do surgimento das línguas românicas modernas um modo de entender novas formas de representação da realidade pela literatura.

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    FILME

    O CÃO DOS BASKERVILLES ***
    Terence Fisher (Brook Film, R$ 29,90)
    Mestre do cinema de horror, Terence Fisher adapta nessa película de 1959 o melhor romance da série Sherlock Holmes, do britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930), reunindo dois atores emblemáticos do gênero: Peter Cushing, como o cerebral e fleumático detetive, e Christopher Lee, no papel do herdeiro da maldição que pesa sobre os Baskervilles e que levará Sherlock às charnecas góticas do interior inglês.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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