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    Manuel da Costa Pinto

    Livro sobre escritor e ativista político permite entender Rússia de Putin

    08/03/2015 02h00

    O político Boris Nemtsov, opositor de Vladimir Putin assassinado em Moscou no dia 27 de fevereiro, é o mais recente nome de uma lista de inimigos do presidente russo mortos misteriosamente.

    Entre eles está a jornalista Anna Politkovskaia, alvejada em 2006, e é a partir desse episódio que Emmanuel Carrère começa a narrar a história de outro desafeto de Putin: o ativista e escritor Eduard Savenko, codinome "Limonov" —título do livro do escritor francês publicado no Brasil em 2013 e de desconcertante atualidade.

    A trajetória de Limonov é digna da ficção: "Foi delinqüente na Ucrânia, ídolo do underground soviético; mendigo, depois mordomo de um bilionário em Manhattan; escritor da moda em Paris; soldado perdido nos Bálcãs; e agora, no imenso caos do pós-comunismo, velho chefe carismático de um partido de jovens desesperados".

    A agremiação a que se refere Carrère tem a singela denominação de Partido Nacional-Bolchevique e traduz aquilo que esteve na base da Rússia czarista, do sistema soviético e do "neoeurasianismo" de Putin: um projeto imperialista alheio a valores universalizantes, "ocidentais".

    O livro de Carrère não é sobre um perseguido político do tipo Nemtsov, mas sobre um tipo de aventureiro tão fracassado quanto Limonov e tão vencedor quanto Putin. Entre ambos, a ambição sem limites, não do individualista "burguês", materialista e vaidoso, mas do profeta que deseja ser venerado por sua força —e que faz esses dois inimigos do comunismo idolatrarem a audácia de Stalin.

    Todas as atitudes de Limonov revelam uma inveja patológica e uma vocação de herói espiritual tipicamente russa. Despreza os dissidentes soviéticos porque chegou tarde demais para rivalizar com eles, preferindo a aura de delinquente e o convívio com criminosos comuns, vangloriando-se de ser o único homem capaz de perceber as semelhanças entre os lavabos de uma "penitenciária modelo" russa e de um hotel de Nova York projetado pelo designer Philippe Starck (pois frequentou ambos).

    Ele se rói de ciúme de Joseph Brodsky (ganhador do Nobel de literatura) e escreve livros autobiográficos sobre seus casamentos com megeras ninfomaníacas e seus tempos de michê nos EUA. Entretanto, abdica do sucesso nas rodas intelectuais parisienses para se associar aos sérvios no genocídio de croatas e bósnios, expondo-se à execração para triunfar na admiração estupefata de quem sabe que, perto dele, o escritor-soldado, os "beatniks" eram adolescentes disfuncionais.

    Limonov tem orgulho do fracasso como Putin tem orgulho de seu cinismo mafioso. A diferença é que, aos 72 anos, ele rumina as memórias de sua vida romanesca, enquanto o czar do pós-comunismo tem ogivas nucleares.

    LIVRO

    LIMONOV ***
    AUTOR: Emmanuel Carrère
    TRADUTOR: André Telleseditora: Alfaguara (2013, 1ª edição, 344 págs., R$ 44,90)

    *

    LIVRO

    UM ROMANCE RUSSO ***
    Livro sobre prisioneiro húngaro confinado na Rússia expõe vínculos de Carrère com país e técnica de se incluir na investigação romanesca.
    AUTOR: Emmanuel Carrère
    TRADUTOR: André Telles
    EDITORA: Alfaguara (2008, 1ª edição, 248 págs., R$ 41,90)

    FILME

    ADEUS, CAMARADAS! ***
    Documentário sobre a derrocada do comunismo destaca "underground" vivido por Limonov na juventude.
    DIREÇÃO: Andrei Nekrasov
    DISTRIBUIDORA: Versátil (2011; DVD R$ 49,90)

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    LIVRO

    A 25ª HORA **
    Virgil Gheorghiu; tradução de André Telles (Intrínseca, 2014, 352 págs., R$ 39,90)
    No romance do filósofo romeno (adaptado em 1963, com o ator Anthony Quinn), um camponês é perseguido erroneamente como judeu durante a Segunda Guerra e faz périplo por campos de concentração até que um equívoco substitua outro: um médico nazista vê nele o protótipo da raça ariana. Drama pessoal atravessado pela tragédia histórica da manipulação totalitária.

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    DISCO

    VILLA-LOBOS - SINFONIA Nº 10 - AMERÍNDIA **
    Osesp regida por Isaac Karabtchevsky (Naxos; R$ 38,50)
    A "Décima Sinfonia" (1952) traz o Coro da Osesp, o barítono Leonardo Neiva e o baixo Saulo Javan entoando cantos baseados em relatos ameríndios (na língua tupi) e em escritos do padre Anchieta. Sinfonia-oratório com cinco movimentos, é a obra mais ambiciosa e monumental de Villa-Lobos, fruto de uma encomenda para celebrar a fundação de São Paulo, em 1554.

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    FILME

    O MÉDICO ALEMÃO *
    Lucía Puenzo (Imovision, R$ 39,90)
    Em 1960, na Patagônia, médico se aproxima de família cuja filha tem problema de crescimento e usa técnicas que, somadas a seus contatos com comunidade germânica local, acaba por sugerir sua identidade: Josef Mengele (1911-1979), nazista que fez experimentos humanos em campos de concentração e morreria incógnito no Brasil. Baseado em romance da própria cineasta, trama se sustenta na atmosfera sinistra.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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