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    Manuel da Costa Pinto

    Disco com músicas da Síria mostra face moderna da cultura árabe

    10/05/2015 02h00

    "As músicas apresentadas neste CD foram compostas há quase duas décadas, em tempos de paz, quando tudo parecia estável e permanente", escreve o flautista Flavio Metne no livreto encartado no disco "Poemas Musicais do Oriente Médio – Musiqa Suriyya". A expressão "tempos de paz" se refere ao período de relativa estabilidade política da Síria que precedeu o atual conflito desencadeado a partir da Primavera Árabe (2011) e foi intensificado com a entrada em cena dos guerrilheiros do Estado Islâmico.

    Estes "poemas musicais" apresentam o rosto iluminista, universalista, da cultura árabe, quase sempre oculto pelo extremismo sem fim. O disco traz composições que retomam formas e instrumentos tradicionais, porém dentro de uma linguagem moderna e autoral —duas noções (modernidade e expressão individual) massacradas pelo irracionalismo reinante no Oriente Médio.

    O projeto foi idealizado nos anos 1990 por dois brasileiros que estavam na Síria à época: Rosalie Helena de Souza Pereira, pesquisadora de filosofia árabe e medieval, e Metne, que lecionou no Instituto Superior de Música de Damasco no momento em que para lá confluíam artistas e musicólogos de vários lugares do mundo.

    Eles reuniram um grupo de virtuoses para gravar, em 1995, esse repertório deslumbrante de músicas sírias, que só agora sai em disco e apresenta uma produção contemporânea amplamente ignorada no Brasil. São 12 faixas, todas instrumentais, que alternam improvisos (a cargo dos intérpretes) e peças dos compositores Shafi Badreddin (radicado em Luxemburgo) e Elias Bachoura (hoje em Bruxelas, Bélgica).

    Nos improvisos, aparecem "modos" orientais ("hijaz", "rast", "nahawand", "baiat"), em que intervalos e microtons normalmente ausentes na escala ocidental brotam de instrumentos como "qanun" (semelhante ao címbalo), "nay" (flauta em forma de cana, de timbre peculiar) e "buzuq" (variante do alaúde, também presente nos arranjos).

    Se essas variações remetem às escalas do folclore com a eloquência pessoal conferida pelo improvisador-compositor, as obras de Badreddin e Bachoura introduzem elementos da música erudita de câmara (harmonias e contrapontos de violino, viola, violoncelo e clarinete) em formas tradicionais, como o cíclico "sama'i".

    Um disco hipnotizante e luminoso, que resgata um passado perdido e um futuro cada vez mais utópico.

    POEMAS MUSICAIS DO ORIENTE MÉDIO ***
    ARTISTAS: Elias Bachoura e Shafi Badreddin
    DISTRIBUIDORA: Tratore (R$ 25)

    LIVRO
    Poemas ***
    Antologia do sírio Adonis (pseudônimo de Ali Ahmad Said Esber, nascido em 1930) realiza no plano poético o cruzamento entre tradição árabe e modernidade.
    AUTOR: Adonis
    TRADUÇÃO: Michel Sleiman
    EDITORA: Companhia das Letras (2012, 256 págs., R$ 45)

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    LIVRO

    SOBRE A ARTE BRASILEIRA ***
    Vários autores. Org.: Fabiana Werneck Barcinski (WMF Martins Fontes, 368 págs., R$ 128)
    Da pintura rupestre até o concretismo e o neoconcretismo, esse livro é bem mais do que uma história da arte brasileira. Diferentes ensaístas propõem reflexão vigorosa sobre nossa modernidade inacabada e sobre uma identidade em que "nada nos é estrangeiro, pois tudo o é" —na frase de Paulo Emílio Salles Gomes citada na excelente introdução de Francisco Alambert.

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    DISCO

    MOZART: CONCERTOS PARA PIANO N° 18 E 19 ***
    Mitsuko Uchida com a Orquestra de Cleveland (Decca, R$ 67,90, importado)
    O concerto para piano é o gênero em que Mozart atingiu o máximo da excelência, e Mitsuko Uchida talvez seja sua maior intérprete na atualidade. Dentro das gravações que vem realizando desse repertório, composto por 27 obras, este registro tem um detalhe: a própria pianista japonesa rege, de seu instrumento solista, os músicos da orquestra de Cleveland.

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    FILME

    ENSAIO DE ORQUESTRA **
    Federico Fellini (Spectra Nova, R$ 12,90)
    Se "E La Nave" (1983) fez do mundo da ópera uma alegoria do colapso da era pré-Primeira Guerra, este filme de 1978 faz do meio orquestral a metáfora de uma Itália caótica, assolada por dissonâncias sociais e lutas político-sindicais (por sinistra coincidência, estreou no ano do sequestro e assassinato do ex-primeiro ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas).

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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