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    Manuel da Costa Pinto

    Romance de Kazantzákis tem Cristo abdicando de sua divindade na cruz

    21/06/2015 02h00

    Os fundamentalistas de araque que hostilizaram uma atriz por encenar a crucificação de Cristo durante a Parada LGBT, dois domingos atrás, provavelmente não frequentam livrarias. De todo modo, devem evitá-las especialmente nas próximas semanas, quando as vitrines ostentarão a bela edição de um romance cercado de controvérsias religiosas: "A Última Tentação", do grego Nikos Kazantzákis (1883-1957).

    O livro teve sua primeira edição na Noruega, em 1951, e levaria quatro anos para ser lançado no idioma original. Em 1954, o título entrou no "index" de livros proibidos pela Igreja Católica Romana e, após ser publicado na Grécia, a Igreja Ortodoxa do país pediu a excomunhão de Kazantzákis, negada por seu patriarca.

    "A Última Tentação" não é uma blasfêmia, mas contém elementos heréticos, do ponto de vista da ortodoxia. Uma delas é propor a "dupla natureza do Cristo", homem e Deus ao mesmo tempo –tese condenada pela igreja desde o século 5º.

    Kazantzákis fantasia a adolescência de Jesus, imaginando-o ironicamente como um artesão de cruzes censurado pelos judeus por colaborar com o suplício romano. Também descreve seu pânico diante dos sinais de que seria o messias e os momentos em que resiste aos apelos mais do que explícitos de Maria Madalena.

    Outra heresia é assimilar a tese gnóstica de que a traição de Judas seria um gesto de amor destinado a propiciar a realização da profecia do Deus que entra em agonia para atingir "o auge da imaterialidade" —como diz o escritor em seu comovido prefácio.

    O maior desvio de Kazantzákis, contudo, é justamente imaginar a tentação final de Cristo —que, depois das tentações bíblicas, experimentadas no deserto, sonha abdicar de seu trágico destino e ressuscitar na carne de um carpinteiro bígamo, que à frente de sua prole proclama "guerra ao jejum, à virgindade e à pobreza".

    Ironia das tantas ironias nesse romance humano, piedosamente humano: ao cair em tentação, Jesus trairia assim os desígnios proféticos de Judas, o traidor dos traidores.

    E se, no último dos 33 capítulos (mesmo número da idade de Cristo), Jesus reconhece na tentação mais uma das "fantasmagorias do Maligno", o romance jamais perde a ambiguidade que está no coração do verdadeiro cristianismo.

    LIVRO

    A ÚLTIMA TENTAÇÃO **
    AUTOR: Nikos Kazantzákis
    TRADUÇÃO: Marisa Ribeiro Donatiello
    EDITORA: Grua (2015, 520 págs., R$ 59,90)

    FILME

    A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO **
    Adaptação com Williem Dafoe no papel de Jesus gerou mesma onda de protestos que romance de Kazantzákis.
    DIRETOR: Martin Scorsese
    DISTRIBUIDORA: Universal Pictures (1988, DVD, R$ 19,90)

    LIVRO

    O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO **
    Romance do escritor português segue trilha aberta pelo autor grego, mas de modo explicitamente anti-religioso.
    AUTOR: José Saramago
    EDITORA: Companhia das Letras (1991, 448 págs., R$ 62)

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    LIVROS

    AS NOITES REVOLUCIONÁRIAS **
    Restif de La Bretonne; tradução de Marina Appenzeller e Luiz Paulo Rouanet (Estação Liberdade, 400 págs., R$ 49)
    O escritor libertino foi testemunha ocular da Revolução Francesa. Nesse relato, mescla memórias das turbulências que se seguiram à queda da Bastilha a dramas fictícios em que se explicitam os impulsos de vingança e voluptuosidade que irromperam durante as vigílias de caça aos nobres.

    CALIGRAFIA SILENCIOSA **
    George Popescu; tradução de Marco Lucchesi (Rocco, 80 págs., R$ 24,50)
    O poeta romeno George Popescu, nascido em 1948, reúne aqui dois conjuntos de poemas. Aquele que dá título ao livro e "Ars Moriendi", escrito após visita ao Brasil em 2005. Em ambos, um sentimento de desolação existencial traduzido em versos de modernidade formal, com flagrantes cotidianos de alta voltagem filosófica.

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    DISCO

    XANGÔ *
    Quaternaglia (Tratore, 2015, R$ 25)
    Entre os dois arranjos de obras de Villa-Lobos que abrem e fecham o disco, estão peças dedicadas a esse quarteto de violões brasileiro com crescente reconhecimento internacional. Destaque para as variações de Almeida Prado e para a suíte de Ronaldo Miranda, num registro que traz Paulo Bellinati e Sérgio Molina, entre outros.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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