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    Manuel da Costa Pinto

    Ensaio sobre a 'saudade' mostra vários sentidos da definição do sentimento

    23/08/2015 02h00

    Quem nunca ouviu dizer que "saudade" é um termo que só existe em português? Uma palavra cujo sentido está próximo de conceitos mais universais, como "nostalgia" ou "melancolia", mas que permanece intraduzível. A saudade seria, assim, uma espécie de patrimônio sentimental exclusivo dos lusitanos e dos países que foram colonizados por Portugal.

    Da poesia dos trovadores e de Camões a Fernando Pessoa, passando pelo fado e por ensaios como os de Eduardo Lourenço (maior intelectual português vivo e autor de estudos clássicos sobre a saudade), esse afeto que nos é tão íntimo —e ao mesmo tempo tão difícil de definir— é tema de um livro desde já fundamental, de autoria de um francês radicado no Brasil cujo nome, Samuel de Jesus, não deixa de ter ressonâncias lusas.

    Divulgação
    "“Les Sables d’Olonne"”, do francês Denis Roche, exemplo da reflexão do livro sobre a “imagem-saudade”
    "“Les Sables d’Olonne"”, do francês Denis Roche, exemplo da reflexão do livro sobre a “imagem-saudade”

    Aviso aos navegantes: "Saudade" é fruto de uma tese universitária, com tudo o que isso acarreta de notas de rodapé, referências bibliográficas e reflexões de ordem teórica mais densa, que remetem a tratados medievais e à filosofia moderna de Martin Heidegger, Giorgio Agamben ou Walter Benjamin.

    Mas Samuel de Jesus escreve tão bem que ler esse livro dá um prazer equivalente ao de seu próprio objeto de estudo —a experiência saudosista de estar em contato com aquilo que se julgava perdido.

    Teórico de artes plásticas, o pesquisador reserva a maior parte do livro à fotografia como expressão da "imagem-saudade", ou seja, como uma linguagem visual que, não sendo exclusivamente lusitana, perpetua a presença do ausente e alimenta nosso insaciável desejo de convocar os seres e os lugares que se dissiparam no passado.

    Na contramão daqueles que afirmam que o termo "saudade" é intransponível, Samuel de Jesus consegue traduzi-lo; não com vocábulos correspondentes em outros idiomas (como o "spleen" inglês ou o "regret" francês), porém mostrando como ele se forma a partir de uma experiência histórica (viagem e exílio), de uma mitologia (o sebastianismo português) e de uma "polifonia confusa" de palavras que, oriundas do latim, do catalão ou do luso-galego, expressam "nostalgia do futuro" —ou, na linda definição de um autor do século 17, "um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece".

    SAUDADE
    AUTOR: Samuel de Jesus
    TRADUTOR: Fernando Scheibe
    EDITORA: Autêntica (2015, 368 págs., R$ 54)

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    Conexão

    LIVRO - MITOLOGIA DA SAUDADE
    Seguido de "Portugal como Destino", esse deslumbrante ensaio sobre a saudade está esgotado, mas pode ser achado em sebos e bibliotecas.

    Autor: Eduardo Lourenço
    Editora: Companhia das Letras (1999, 160 págs., R$ 36)

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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