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    Manuel da Costa Pinto

    Olhos livres

    18/10/2015 02h00

    Entre os grandes nomes da vanguarda literária portuguesa, José de Almada Negreiros foi o mais longevo (1893-1970) e o menos conhecido. Fernando Pessoa é hoje nome universal e Mário de Sá Carneiro ocupa lugar central no ambiente lusófono.

    Em boa medida, o desconhecimento de Almada se deve ao fato de que sua obra excede o limite da página impressa. A recém-lançada antologia "Poesia É Criação" traz já no título a chave para se entender que, no seu caso, o fazer poético consiste antes num gesto que numa forma.

    Ilustração: Almada Negreiros
    Caricatura de Fernando Pessoa feita por Almada Negreiros
    Caricatura de Fernando Pessoa feita por Almada Negreiros

    Organizado por Fernando Cabral Martins e Sílvia Laureano, o livro reúne poemas em verso e prosa, desenhos e peças de teatro, mas também manifestos e conferências que desvelam o teor performático de sua obra.

    Numa intervenção sobre o futurismo, por exemplo, ele se apresenta vestido de aviador (a foto está reproduzida no volume) e, na conferência "A Invenção do Dia Claro", o que se lê é um fluxo de pensamentos que inclui seções de "Confidências" que unem ficção, memória e versos de feição "sensacionista" —termo cunhado por Pessoa para uma expansão da sensibilidade sintetizada no lema "sentir tudo de todas as maneiras".

    Se Pessoa o faz por meio de seus heterônimos (o mote citado acima é atribuído à "persona" Álvaro de Campos), o suicida Sá Carneiro parece encenar dramaticamente sua impossibilidade, como em "Dispersão": "Perdi-me dentro de mim/ Porque eu era labirinto,/ E hoje, quando me sinto/ É com saudades de mim".

    É, portanto, com Almada Negreiros —poeta, pintor e muralista, além de coreógrafo, bailarino, ator, artista circense e boxeador— que essa expansão se materializa numa profusão de linguagens e gêneros.

    A antologia traz poemas memoráveis, como "A Cena do Ódio" ("Ergo-me Pederasta apupado d'imbecis,/ divinizo-me Meretriz, ex-libris do Pecado,/ e odeio tudo o que não me é por me rirem o eu!"), cuja iconoclastia está na raiz de seu "elogio da ingenuidade" e de sua apologia do desenho como busca de uma poética que permita "ver com olhos livres" —na frase de Oswald de Andrade, vanguardista brasileiro que mais se aproxima, pelo caráter mulfifacético, do multifacetado português.

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    Conexões

    LIVROS

    Poesia É Criação - Uma Antologia - ótimo

    Autor: José de Almada Negreiros
    Organização: Fernando Cabral Martins e Sílvia Laureano Costa
    Editora: Ateliê (2015, 296 págs., R$ 56)

    ORPHEU 1915-2015 - muito bom
    Antologia de textos da centenária revista portuguesa, inclui revisões críticas que dimensionam importância de Almada Negreiros ao lado dos vanguardistas Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.

    Organização: Carlos Felipe Moisés
    Editora: Unicamp (304 págs., R$ 54)

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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