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    Manuel da Costa Pinto

    O mantra da recusa

    01/11/2015 12h31

    "Preferia não." Essa é a resposta que o protagonista de "Bartleby, o Escrevente" dá a seu chefe repetidas vezes, ao longo dessa novela de Herman Melville (1819-1891) que constitui uma das mais enigmáticas parábolas da história da literatura.

    A ação se passa quase o tempo todo no escritório de advocacia do narrador, situado em Nova York (a obra tem o subtítulo "Uma História de Wall Street"), onde coabitam três escrivães, apresentados por seus cômicos apelidos: o beberrão Turkey (peru), o irritadiço Nippers (pata de caranguejo) e o aprendiz Ginger Nut (bolacha de gengibre).

    A chegada da figura "palidamente asseada, lastimosamente respeitável, incuravelmente desolada" de Bartleby seria a solução para o acúmulo de trabalho do narrador e para as idiossincrasias de seus funcionários.

    E, de fato, Bartleby mostra-se um copista diligente, faminto por trabalho. Mas, lá pelo terceiro dia, ao solicitar que ele conferisse um documento, o advogado recebe, atônito, a resposta que passará a ser pronunciada a cada demanda, tornando-se uma espécie de mantra da recusa.

    Confinado atrás de um biombo, diante de uma janela com vista para a parede de um edifício lateral, Bartleby se transforma num eremita da burocracia, que passa o dia fitando a luz que desce do alto dos arranha-céus novaiorquinos, como se filtrada por um "minúsculo orifício no meio de uma cúpula".

    Melville viveu aventuras navais na Marinha mercante e participou de motim a bordo de um baleeiro -experiências às quais deu conotações mítico-bíblicas em clássicos como
    "Moby Dick" (1851) e o póstumo "Billy Budd", sendo definido por Camus como "o Homero do Pacífico".

    "Bartleby, o Escrevente" é um clássico de outra natureza -claustrofóbico, urbano, precursor das fábulas absurdas e do humor gélido de Franz Kafka (1883-1924).

    Dentre as traduções disponíveis, esta nova edição, bilíngue, traz belas ilustrações do espanhol Javier Zabala, além de preciosas notas em que o tradutor Tomaz Tadeu esclarece referências do texto e discute a suposta indefinição do "Preferia não" de Bartleby, que o levará ao despejo e à inanição.

    Como todo clássico -mesmo um clássico moderno-, essa novela de 1853 atravessa os tempos ganhando novos usos e significados: de prefiguração do inferno burocrático e da alienação do trabalho a gesto de "resistência ética" (Derrida) ou a alegoria da indeterminação da linguagem literária (Deleuze). Hoje, pode ser usada como contraveneno para o mundo corporativo dos CEOs e do jargão da "proatividade".

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    Conexões

    LIVROS

    Bartleby, o Escrevente - Uma História De Wall Street - ótimo

    AUTOR: Herman Melville
    ILUSTRADOR: Javier Zabala
    TRADUTOR: Tomaz Tadeu
    EDITORA: Autêntica (152 págs., R$ 47)

    Bartleby, ou da Contingência - muito bom

    Em recente leitura de peso da novela, filósofo italiano vê em Bartleby a potência ética do "não fazer". Edição inclui mesma tradução da obra de Melville.

    AUTORES: Giorgio Agamben e Herman Melville
    TRADUTORES: Vinicius Honesko e Tomaz Tadeu
    EDITORA: Autêntica (2015, 112 págs., R$ 34)

    Bartleby e Companhia - muito bom

    Mestre em narrativas metalinguísticas, catalão inventa escritor que desistiu de escrever e compila casos de autores reais que sofreram do que chama "síndrome de Bartleby".

    AUTOR: Enrique Vila-Matas
    TRADUTORES: Josely Vianna Baptista e Maria Carolina de Araújo
    EDITORA: Cosac Naify (2005, 192 págs., R$ 49,90)

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    LIVRO

    A Orgia Perpétua - ótimo

    Mario Vargas Llosa; tradução: José Rubens Siqueira (Alfaguara, 280 págs., R$ 44,90; e-book R$ 29,90)

    Nesse ensaio de 1975, que mescla crítica literária e memória, o peruano Mario Vargas Llosa (prêmio Nobel de 2010) faz leitura minuciosa do romance "Madame Bovary", de Flaubert. Da torturante busca pela palavra justa às cartas e a outras obras do clássico francês, Llosa desvela no realismo flaubertiano um orgiástico embate "entre a realidade objetiva e a subjetiva".

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    FILME

    O Colecionador - muito bom

    William Wyler (Versátil, R$ 19,90)

    Nesse drama de 1965, do diretor norte-americano de "Horas de Desespero" e "O Morro dos Ventos Uivantes", um introvertido colecionador de borboletas sequestra jovem por quem nutre paixão platônica e fetichista. Longe dos clichês que cercam os psicopatas do cinema, o terror psicológico inclui elementos como a diferença de classes e o caráter insondável do desejo.

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    DISCO

    Amandla - muito bom

    Miles Davis (Warner Music; R$ 32,80)

    "Amandla" (1989) —título que remete ao grito de protesto zulu contra o "apartheid" da África do Sul— foi o último disco lançado em vida pelo camaleônico e genial Miles Davis. Pertence à fase "fusion" do compositor que foi do bebop ao modal jazz. Ou seja, sintetizadores, elementos do funk e ritmos africanos, mas sempre com seu insinuante trompete controlando o "swing".

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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