• Colunistas

    Tuesday, 30-Apr-2024 20:14:47 -03
    Manuel da Costa Pinto

    O obsceno em cena

    21/02/2016 11h38

    Não precisa tirar as crianças da sala nem colocar o livro na prateleira mais alta da estante. "Cinema Explícito", do sociólogo Rodrigo Gerace, é uma pesquisa sobre as "Representações Cinematográficas do Sexo", conforme seu subtítulo. Reproduz algumas imagens exemplares de filmes eróticos e pornográficos e faz um levantamento minucioso e analítico dessa filmografia –podendo perfeitamente servir de guia para onanistas e "voyeurs" metódicos.

    Mas seu ponto forte são discussões sobre o que distingue o erótico, o obsceno e o pornográfico, mostrando, a partir de autores como o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) e a ensaísta norte-americana Susan Sontag, as oscilações que o próprio sexo vai sofrendo ao longo da história do cinema –de esfera pecaminosa e proibida a ato transgressivo e político, passando pelas vanguardas e pela indústria do entretenimento.

    Da produção dos "stag films" dos primórdios do cinema até a proliferação, a partir dos anos 1990, de fitas cassete e DVDs de sacanagem para consumo doméstico, Gerace descreve uma evolução que leva de um voyeurismo passivo para uma identificação maior do espectador com os atores em cena.

    Divulgação
    Cinema: Marlon Brando e Maria Schneider em cena clássica do filme "O Último Tango em Paris", de Bernardo Bertolucci. (Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Marlon Brando e Maria Schneider em cena do filme "O Último Tango em Paris", de Bernardo Bertolucci

    Entre um ponto e outro, coloca uma questão tanto estética quanto moral: o que distingue o erotismo do cinema "mainstream" ou autoral (de diretores como Buñuel, Pasolini, Bertolucci, Patrice Chéreau e Lars Von Trier) do sexo explícito que vemos no pornô?

    "O senso comum considera a pornografia suja, negativa, explícita; enquanto o erotismo é visto sem preconceito, é sublime, reflexivo, simulado, 'limpo', organizado", diz Gerace. Na contramão do clichê, ele relaciona filmes que lançaram mão dos recursos "sórdidos" da pornografia para produzir arte e, sobretudo, para produzir uma reflexão sobre desejos e fetiches que não exclui a intenção (comercial e ideológica) de excitar o espectador.

    Por isso, um dos capítulos mais interessantes é o que trata dos cinemas "underground" ("floração tardia das vanguardas europeias") e "queer", cujas perversões não apenas se equiparam às dos sites pornôs, mas transgridem convenções sobre o grotesco e o extravagante, sacralizando-os como o faz Pedro Almodóvar.

    Se o obsceno é aquilo que está "fora de cena", que deve ser escondido, e se a pornografia é o "discurso veiculador do obsceno", a distinção já não faz mais sentido. O que faz sentido é algo implícito em "Cinema Explícito": ver na compulsão pelo realismo da pornografia, na fissura pelo detalhe anatômico, uma fragmentação da realidade e a busca não apenas do preenchimento imaginário dos orifícios do corpo, mas de suprir uma falta, um vazio, que corresponde à própria dinâmica amoral do desejo.

    -

    LIVROCINEMA EXPLÍCITO
    AUTOR: Rodrigo Gerace
    EDITORA: Perspectiva/Sesc (320 págs., R$ 72)

    -

    Conexão

    COISAS ERÓTICAS - A HISTÓRIA JAMAIS CONTADA DA PRIMEIRA VEZ DO CINEMA NACIONAL

    Reconstitui a história da filmagem de "Coisa Eróticas" (1982), de Raffaele Rossi, primeira produção de sexo explícito brasileira –tema pouco abordado por Gerace.

    AUTORES: Denise Godinho e Hugo Moura
    EDITORA: Panda Books (2012, 200 págs., R$ 37,90)

    -

    DISCO

    VIVALDI - PIETÀ
    ARTISTA: Philippe Jaroussky (Erato, R$ 39)
    Poucos compositores sofreram tanto com a banalização de sua obra mais conhecida quanto Antonio Vivaldi com as "Quatro Estações" –a ponto de ser quase desconhecida sua criação vocal. O magnífico contratenor francês Philippe Jaroussky rege o Ensemble Artaserse e interpreta algumas peças sacras, em especial o "Stabat Mater", ápice da criação vocal do barroco veneziano.

    -

    FILME

    1984
    DIRETOR: Michael Radford (Obras Primas, R$ 39,90)
    Publicado em 1949 por George Orwell, o romance ganhou adaptação à altura no filme de Radford, com ótimas atuações de John Hurt e Richard Burton, lançado exatamente no ano em que o escritor situou sua "distopia". Ou seja, um mundo alternativo e imaginário, mas na mão contrária das utopias: uma sociedade totalitária, controlada pelo olhar onipresente de um Big Brother muito mais letal do que o vulgar "reality show" que passou a batizar.

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024