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    Manuel da Costa Pinto

    À sombra do vulcão

    20/03/2016 02h00

    Ao final da Segunda Guerra, o diretor italiano Roberto Rossellini fez uma trilogia composta por "Roma, Cidade Aberta" (1945), "Paisà" (1946) e "Alemanha Ano Zero" (1948). São filmes que flagram, respectivamente, o final da ocupação da Itália pelos nazistas, após a derrocada do fascismo; o encontro com as tropas aliadas, com o que havia de benigno e incômodo na nova ocupação; e a Berlim arruinada pela guerra, com os sentimentos de culpa e rancor minando a reconstrução da ideia de civilidade.

    Pouco depois, em 1950, Rossellini lançaria um longa em que essas sequelas morais também emergem da hecatombe, mas remontam a um conflito talvez mais essencial e perene: "Stromboli", filme a partir do qual a sueca Ingrid Bergman (no papel da protagonista Karin) substituiu Anna Magnani no posto de atriz principal e mulher do diretor.

    Divulgação
    A atriz Ingrid Bergman em cena do filme "Stromboli", de Roberto Rosselini Crédito: Dilvulgação
    A atriz Ingrid Bergman em cena do filme "Stromboli", de Roberto Rosselini

    Karin é uma lituana que, ao final da guerra, está presa num campo de refugiados italiano, após viver na ex-Tchecoslováquia e na Iugoslávia. Ao ter negado um pedido de visto para a Argentina, casa-se com um soldado e vai morar na aldeia da ilha de Stromboli (Sicília), onde ele trabalha como pescador.

    O matrimônio por conveniência instala em Karin o sentimento de aversão por aquela comunidade rude. Queixa-se das privações econômicas e, sobretudo, da discrepância entre os mundos a que ambos pertencem. Tem momentos de enternecimento diante dos aldeões que a acolhem de modo simplório, mas concentra o ódio no marido, despertando nele o ciúme –alimentado pelas fofoqueiras de plantão– por frequentar a casa de uma costureira de má reputação e por flertar com o vigia do farol da ilha. E, em dado momento, revela ao pároco da aldeia que havia "pecado" com um oficial nazista, transformando a piedade do religioso num mal disfarçado desprezo.

    A potência do filme está em calcar esse drama moral numa narrativa visual, num conjunto de cenas em que Ingrid Bergman (cuja fisionomia nórdica contrasta por si só com a comunidade meridional) expressa o estupor cosmopolita diante daquela paisagem mineral de casas caiadas e cisternas e da árida vegetação à sombra do vulcão Stromboli.

    As sequências-chave são a pesca do atum, com selvagem plasticidade, e a erupção vulcânica de fato ocorrida durante as filmagens da obra que, ao utilizar atores semiprofissionais, materializa o sentido documental do cinema neorrealista italiano.

    Essas cenas impulsionam Karin a fugir, grávida, pelas encostas do vulcão, conduzindo a um final aberto em que o arrebatamento sublime do horror e do mistério, da beleza e da fealdade, confere um sentido enigmático ao filme, com o conflito moral remontando a uma tensão ancestral entre diferentes noções de civilização e barbárie.

    STROMBOLI
    DIRETOR: Roberto Rossellini
    DISTRIBUIDORA: Continental
    (1950, R$ 39,90)

    Conexão

    FILME

    A TERRA TREME
    Filmado com pescadores sicilianos de Catânia, esta obra-prima neorrealista espelha em uma sociedade tradicional a dinâmica entre exploração do trabalho e solidariedade comunitária.
    DIREÇÃO: Luchino Visconti
    DISTRIBUIDORA: Cult Classic
    (1948, R$ 34,90)

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    LIVROS

    MEMÓRIAS DE UM EMPREGADO
    Praticamente desconhecido no Brasil (e resgatado por uma editora que vem fazendo trabalho gráfico à altura da extinta Cosac Naify), Tozzi foi contemporâneo de Pirandello e Svevo. Como nos clássicos da literatura italiana novecentista, apresenta um realismo peculiar, cheio de torções estilísticas que expressam a identidade precária do anti-herói moderno –aqui, na forma de diário fragmentado de um filho de operários que, instado a trabalhar, deita no papel suas desavenças com o pai e seu sentimento de inadequação social.
    AUTOR: Federigo Tozzi
    TRADUÇÃO: Maurício Santana Dias
    EDITORA: Carambaia, 144 págs., R$ 57,90)

    TODA POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS
    Esta reedição da poesia completa de Augusto dos Anjos (1884-1914) traz denso estudo do poeta e colunista da Folha Ferreira Gullar, escrito nos anos 1970 e presente em edições anteriores. O volume reúne o livro "Eu" (1912) e versos não recolhidos em vida pelo autor paraibano, cuja mórbida obsessão pela deterioração orgânica representa o lado sombrio do parnasianismo brasileiro e do cientificismo positivista que surgia na virada do século 19 para o 20.
    AUTOR: Augusto dos Anjos
    EDITORA: José Olympio (320 págs., R$ 54,90)

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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