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    Manuel da Costa Pinto

    Contemplações visionárias

    17/04/2016 02h00

    Em 1806, o alemão Friedrich Georg Weitsch pintou uma paisagem em que o naturalista prussiano Alexander von Humboldt e o botânico francês Aimé Bonpland aparecem numa planície do Equador, tendo ao fundo o monte Chimborazo. Cerca de 15 anos depois, Simón Bolívar (influenciado pela ideias de Humboldt sobre a singularidade sul-americana frente à Europa) escalou a mesma montanha —num gesto simbólico de comemoração das campanhas de libertação de Venezuela, Bolívia, Colômbia, Peru e do próprio Equador-, escrevendo depois o poema "Meu Delírio sobre o Chimborazo".

    O episódio é relatado por Katherine Manthorne no livro "Paisagem nas Américas" —com ensaios sobre o tema da exposição homônima, em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo— e diz bastante sobre o imaginário que se formou a partir das pinturas de paisagem no continente.

    Vulcões e montanhas representam para os países andinos aquilo que os pampas significam para Argentina e Uruguai, a mata atlântica para o Brasil ou as cataratas do Niágara para Canadá e EUA: são lugares icônicos, que expressam a terra a ser desbravada, celebram, muitas vezes de modo idílico, o encontro entre colonizadores e povos indígenas e, finalmente, se oferecem como representação simbólica de identidades e busca da autenticidade.

    Grande parte das pinturas da exposição está reproduzida no livro, que, por sua vez, apresenta obras que não estão na mostra e traz mais de 50 textos dos curadores e de 45 autores convidados. Ou seja, não se trata de um catálogo, mas de um livro desde já fundamental para entender a iniciativa pioneira de estabelecer um diálogo entre as pinturas de paisagem nas Américas.

    Alguns textos são "estudos de caso" —por exemplo, do uso do "horizonte baixo" como forma encontrada pelo argentino Pueyrredón para materializar a imensidão plana dos pampas; ou do modo como o artista acadêmico (com suas pinturas históricas) e o artista viajante (com suas paisagens) confluem para as telas em que Cándido López e Pedro Américo fizeram o estupor épico da Guerra do Paraguai sucumbir à natureza desolada.

    Compreendendo "pinturas da Terra do Fogo ao Ártico", segundo seu subtítulo, o livro evita generalizações e expõe a diversidade de formas de projetar o imaginário sobre a paisagem, incluindo a paisagem urbana,"fordista", de Charles Sheeler, a metrópole com cores caipiras de Tarsila do Amaral ou as colinas abstracionistas de Georgia O'Keeffe.

    Assim, se a pintura mexicana foi, em larga medida, "urbanocêntrica", privilegiando as cidades e seus costumes (conforme tradição espanhola), a partir das vanguardas ela transforma a paisagem em "espetáculo cósmico", como na tela "A Sombra do Popo", de Gerardo Murillo.

    Da mesma maneira, um pintor como o norte-americano Frederic Edwin Church lança o expansionismo profético-religioso de seu país tanto nos icebergs canadenses quanto numa cordilheira andina envolvida por luz celestial, em forma de cruz -num dos tantos exemplos de como a pintura de paisagem, de extração europeia e aristocrática, se conjuga com contemplações visionárias do Novo Mundo.

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    LIVRO

    Paisagem nas Américas - Pinturas da Terra do Fogo ao Ártico

    Organização: Peter John Brownlee, Valéria Piccoli e Georgiana Uhlyarik
    Tradução: Marcelo Cipolla, Marcela Vieira e Sérgio Molina
    Editora: Art Gallery of Ontario, Pinacoteca do Estado de São Paulo e Terra Foundation for American Art (280 págs., R$ 80, à venda na livraria da Pinacoteca)

    EXPOSIÇÃO

    Paisagem nas Américas
    A mostra percorre de geleiras a cordilheiras, proporcionando achados desconcertantes, como o paralelismo antes desconhecido entre paisagens urbanas de Tarsila do Amaral e George Josimovich.

    Pinacoteca do Estado de São Paulo. Pça. da Luz, 2, Bom Retiro, centro, tel. 3324-1000. Qua. a dom.: 10h às 17h30 (c/ permanência até as 18h). Até 29/5. Livre. Ingr.: R$ 6 (Pinacoteca e Estação Pinacoteca). Grátis p/ menores de 10, maiores de 60 anos, e sáb. Visita monitorada p/ 3324-0943.

    FILME

    Phoenix
    O diretor de "Barbara" (2012) -também com a atriz Nina Hoss, sobre médica que tenta escapar da Alemanha comunista- volta a investigar os traumas de seu país, agora na figura de uma judia que retorna a Berlim no imediato pós-guerra. "Disfarçada", ela desvela traições e oportunismo moral do marido e de seus amigos sob o nazismo.

    Christian Petzold (Imovision, R$ 39,90)

    LIVROS

    Luminescência - Antologia Poética

    Viatchesláv Kupriyánov; tradução de Aurora Fornoni Bernardini (Kalinka, 168 págs., R$ 30)

    Poesia Russa - Seleta Bilíngue

    Vários; org. e trad. de Aurora Fornoni Bernardini (Kalinka, 64 págs., R$ 20)

    manuel da costa pinto

    É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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