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    Marcelo Freixo

    Não podemos

    22/09/2015 02h00

    Eduardo Cunha é o alquimista do retrocesso. Em suas mãos, o novo nasce velho. Assim ele transformou a esperada reforma política numa contrarreforma conservadora. A Lei da Mordaça é produto desse laboratório do atraso. Se podemos falar no espírito das leis, como fez Montesquieu, ela tem o espírito autoritário do presidente da Câmara.

    Volto ao século 16 para explicar por que chamo a reforma política de Cunha de contrarreforma. À época, a crise de corrupção e representatividade envolvendo a Igreja Católica provocou uma reação: a Reforma Protestante, que propunha a revalorização dos dogmas. A reação da igreja foi batizada de Contrarreforma. Entre as medidas adotadas, estava o índice dos livros proibidos, uma censura às publicações que não condiziam com os fundamentos da fé.

    A Lei da Mordaça, proposta no bojo da contrarreforma política, é o índice dos livros proibidos da nossa democracia. É a tentativa de censurar o novo para salvar uma tradição que se esvai.

    A lei, que aguarda sanção da presidente Dilma para começar a valer, prevê que as emissoras de rádio e TV só serão obrigadas a chamar para os debates eleitorais os candidatos de partidos que têm pelo menos nove representantes na Câmara dos Deputados.

    Se, mesmo assim, a emissora quiser convidar o candidato, a decisão precisará ser aprovada por dois terços dos demais concorrentes.

    Além disso, a contrarreforma muda as regras da divisão do tempo de propaganda. Ela determina que somente 10% do tempo seja igualmente dividido entre os partidos. Os 90% restantes seriam repartidos proporcionalmente entre as siglas com mais representantes. Atualmente, esse percentual é de 66,6%.

    O objetivo dessas propostas é manter os privilégios de grupos políticos conservadores e impedir a renovação e o avanço de uma agenda progressista com mais participação social. É a reafirmação do modelo que gerou a atual crise.

    Apoiá-las significa dar aval às negociatas das cúpulas partidárias em troca de tempo de TV, ao governismo de extorsão do leilão de cargos a aliados, à institucionalização da despolitização e ao empobrecimento do debate, por barrar a diversidade.

    A Lei da Mordaça não prejudica apenas os partidos que não se submetem às regras do jogo político tradicional, ela fere os direitos da população porque os debates são momentos preciosos para as pessoas conhecerem de fato os candidatos e decidirem o voto.

    Enquanto o mundo busca novas formas de ampliar a democracia, como o Podemos na Espanha, Cunha grita um cínico "não podemos". Mas a caminhada continua, porque a democracia não é um lugar a que se chega, mas uma trilha que percorremos.

    Marcelo Freixo

    Escreveu até julho de 2016

    É professor de história e deputado estadual do Rio. Presidiu as CPIs das Milícias, em 2008, e do Tráfico de Armas e Munições, em 2011. Foi candidato a prefeito do Rio em 2012.

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