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    Marcelo Freixo

    Espelho

    05/04/2016 02h00

    O Brasil precisa se olhar no espelho de uma vez por todas. Não de relance, à meia luz, cheio de subterfúgios e máscaras, como se habituou a fazer, mas encarar a si mesmo.

    O Brasil precisa ver as marcas escavadas pela história no seu rosto, passar as mãos sobre elas e sentir os vestígios de anos e anos de problemas não resolvidos, sequer colocados.

    Questionar os olhos cansados de tanto procurar atalhos e se esquivar dos conflitos.

    Perceber o cinismo desenhado no canto da boca. Riso de escárnio que dissimula violências e omissões seculares.

    Somos o país cuja independência foi declarada por um estrangeiro, e a República, proclamada após o golpe de um marechal monarquista.

    Somos a casa grande que escravizou milhões de negros e continua a construir senzalas para seus descendentes.

    Apesar de tanta luta, somos o país da abertura "lenta, gradual e segura", do eterno consenso tramado no andar de cima, do voto indireto após 25 anos de ditadura civil-militar, que manteve os algozes da democracia no poder.

    Ainda somos a República do café com leite, que tudo muda para permanecer igual. Somos o país que encontrou um atalho chamado Michel Temer, que prefere falar em pedaladas fiscais a discutir a reforma do sistema político-eleitoral.

    Não importa se Temer também assinou decretos autorizando pedaladas em 2014 e 2015, quando assumiu interinamente a Presidência. Não interessa se PMDB deixa o governo para continuar governo.

    Somos o país que elege inimigos, não adversários políticos. Que não debate ideias, se esquiva da discussão para desferir o golpe. Que não derrota, derruba. Para a sorte de muitos, nosso senso de moralidade é seletivo.

    Apesar de tudo, há uma brecha nessas muralhas para que nós comecemos a nos olhar no espelho: a mistura positiva do público com o privado.

    O destino do país invadiu nossos sentimentos mais particulares e tomou as ruas.

    A política está nas mesas dos bares e nas igrejas, na boca da madame e da funkeira, do professor e do porteiro.

    A classe artística está novamente no palco das ruas, pensando junto com a sociedade e sendo mais comentada por seus posicionamentos políticos do que por seus personagens.

    A política pode ser ressignificada como o espaço do exercício das diferenças de ideias, sejamos contra ou a favor do governo. Ter lado não é ruim.Ruim é negar e querer eliminar o outro.

    A democracia nos impõe desafios, não atalhos.

    Impeachment, nos termos atuais, sem a comprovação de crime de responsabilidade, não é legítimo. É mais uma falsa saída.

    Tenhamos coragem para encarar o reflexo no espelho sem temer a vertigem.

    Marcelo Freixo

    Escreveu até julho de 2016

    É professor de história e deputado estadual do Rio. Presidiu as CPIs das Milícias, em 2008, e do Tráfico de Armas e Munições, em 2011. Foi candidato a prefeito do Rio em 2012.

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