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    Marcelo Coelho

    Economias

    09/04/2014 03h02

    Vejo com simpatia os esforços do governo para reduzir o consumo de água. Sou dos que usam o jato da torneira como uma espécie de escovão, admirando a capacidade de um puro líquido, se pressionado a contento, na remoção das mais incrustadas cascas.

    Mudar de hábitos nem sempre é tão difícil. O cinto de segurança virou rotina sem maior problema. Quanto ao uso do fio dental, faço progressos.

    Só que a mudança nem sempre depende de uma conversão interior. O mundo externo, e seus objetos corriqueiros, também precisam colaborar.

    Tome-se o caso da água. Tudo poderia ser mais fácil se eu soubesse, por exemplo, onde ficam as tampinhas do ralo. Imagino que em países mais econômicos, como a França ou a Inglaterra, não pareça especialmente porco deixar a água usada no fundo da pia, como numa espécie de aquário turvo, servindo para tirar o grosso da sujeira.

    Contaram-me —mas a história vem dos anos 1970— que, na Inglaterra, a mesma água da banheira era usada pela família inteira em seu banho semanal. A estudante brasileira, que morava na mesma casa, recebeu a especial cortesia de ser a primeira a tomar banho.

    Nunca chegaremos a tanto, mas temos economias intrigantes. Pródigos no uso da água, temos uma atitude supersticiosa com relação à pasta de dente. Não conheço brasileiro que não faça verdadeiras ginásticas digitais para extrair de um tubo exausto seu último dejeto.

    Deve ser herança do tempo em que esses tubos eram de alumínio. Quando mal espremidos, metade de seu conteúdo se desperdiçava. Hoje em dia, com a embalagem plástica, quantidades desprezíveis, num valor que estimo em frações de centavo, ficam guardadas no tubo que chega ao fim.

    Não nos conformamos; queremos extorquir da pasta seu último tesouro. Por outro lado, só raríssimas vezes pude ver uma caneta Bic com a carga usada até o fim.

    Hábitos que mudam ou não mudam associam-se às economias que fazemos e não fazemos. Digo isso pensando no mal-estar da classe média, que se reflete, provavelmente, na queda de popularidade do governo Dilma Rousseff.

    Por que não cairia?, pergunta o leitor, com razão. As obras não andam, o país parece aquele tubo de pasta de dente do qual não sai mais quase nada, e para falar em outro tipo de extração de material precioso, o caso da Petrobras atinge vergonhosamente a imagem de Dilma Rousseff.

    Acrescento, contudo, um fator de impopularidade que valeria pesquisar melhor. À minha volta, vejo dois tipos de pessoas bastante enforcadas nas finanças domésticas.

    Em primeiro lugar, há os brasileiros que devem (no cartão, no cheque especial), e desses nem é preciso falar. Desconfio que sejam em muito maior número do que atestam as estatísticas sobre inadimplência. Temo pelo dia em que uma grande bolha, uma grande maquiagem, um grande não sei quê seja revelado, mas não tenho nenhuma condição de prever acontecimentos desse tipo.

    Em segundo lugar, existem os brasileiros que não devem dinheiro. Não sei quantos chegam a ter seus investimentozinhos. O que acontece com essa parcela da população?

    A queda nos juros (que beneficia os devedores mas não muito), por outro lado prejudica os poupadores. A inflação não caiu; e volto ao meu raciocínio sobre os hábitos do cotidiano.

    A classe média paga, além dos impostos de que reclama, uma série de "impostos brancos", que vão desde os gastos com equipamentos de segurança do condomínio até o transporte escolar.

    Essas coisas podem ir aumentando de preço de forma traiçoeira (penso nos planos de TV a cabo em que você paga pouquíssimo nos primeiros meses e que depois sobem a um patamar real).

    Do salário das empregadas domésticas ao gasto com estacionamento do carro, parece que a classe média está chegando ao ponto em que sua disponibilidade financeira impõe uma mudança de hábitos ainda difícil de encarar.

    É tudo uma hipótese, e não tenho como calcular sua amplitude. Para a metade de cima da sociedade, é possível que os juros gloriosos do tempo de Malan, de Meirelles e de Palocci tenham dado uma ajudinha que não existe mais.

    Se há os enforcados pelas dívidas, também na outra ponta é possível que a corda aperte no pescoço. Por essas e por (muitas) outras, o governo Dilma é que vai ficando de língua de fora. Resta saber o quanto tem para gastar até as eleições. Lembrando que não há tanta água assim para passar debaixo da ponte.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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