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    Marcelo Coelho

    Herança maldita

    08/10/2014 02h00

    Um belo clássico do cinema de horror acaba de sair em DVD, numa caixa editada pela Versátil. Trata-se de "Na Solidão da Noite", produção inglesa de 1945, com Michael Redgrave no papel de um ventríloquo que, bem, melhor não contar.

    Comecei a perder o medo desse tipo de coisa aí pelos 13 anos. A TV Bandeirantes tinha um programa à meia-noite das sextas-feiras, intitulado "Cine Mistério". Das primeiras vezes, sozinho, na cama, coberto até o pescoço (era inverno), eu me sentia desafiado diante da tela em preto e branco.

    Depois de apagada, a TV ainda mantinha uma luminosidade vigilante e fátua, como se, resistindo a fechar seus olhos, tirasse algum proveito em imitar sinistramente a minha insônia.

    A impressão logo passou. Em pouco tempo, destacavam-se apenas o papelão das masmorras, a borracha das aranhas, as pregas na roupa do monstro.

    Mesmo assim, alguns filmes mantiveram seu poder de arrepiar. "Na Solidão da Noite" reúne vários episódios, dos quais o melhor foi dirigido pelo brasileiro Alberto Cavalcanti (1897-1982). Uma história única entrelaça as diversas partes do filme, que se organizam até o pesadelo final.

    Um arquiteto é convidado para passar o fim de semana numa casa de campo, para apresentar um plano de reformas. Deverá ir sozinho ou com a mulher? A mulher fica, ele pega o carro e avança pelos campos da Inglaterra.

    Quando chega a seu destino, tem a impressão de que já viu todas as pessoas reunidas na sala a esperá-lo. Adivinha a localização dos móveis e dos aposentos. Prevê que uma mulher morena chegará mais tarde, sem aviso.

    Está inquieto; os convivas tentam acalmá-lo, contando histórias curiosas, que vão do intrigante ao poético e ao humorístico, mas com muita inquietação pelo meio.

    Um jovem se recupera de um acidente no hospital, começa um flerte com a enfermeira, adormece às dez da noite. Abre os olhos novamente, vai até a janela. Um carro fúnebre, com dois cavalos e um cocheiro, está à espera. Para levar o jovem ao seu próprio enterro.

    Em outro episódio, dois amigos íntimos, já passados da meia-idade, descobrem-se apaixonados pela mesma mocinha. Ela não sabe qual deles escolher. Como os dois são excelentes jogadores de golfe, decidem disputá-la numa partida, que terá resultados fatais.

    Não estrago totalmente a história se disser que o fantasma do amigo irá perturbar o casamento. O segredo está em outra parte da intriga.

    Dou esses exemplos apenas para indicar o caráter bem britânico de "Na Solidão da Noite". Numa época em que a homossexualidade era ainda considerada crime na Inglaterra (a lei foi revogada só em 1967), os pavores e ameaças do inconsciente gay podiam encontrar rápida tradução psicanalítica.

    O amigo golfista não larga do noivo; um carro fúnebre perturba os sonhos do rapaz apaixonado pela enfermeira; um espelho amaldiçoado enlouquece o marido que tinha tudo para ser feliz. Na última história, o ventríloquo é dominado pelo seu boneco –que ameaça abandoná-lo por um rival. O arquiteto do começo do filme, deixando a mulher em casa, será perseguido por todas essas fantasias.

    A graça da coisa, e há um misto de ironia e ingenuidade nisso, é que o filme decide apresentar como fatos, sem subjetividade possível, muitas dessas projeções inconscientes.

    Na caixa da Versátil, intitulada "Obras-Primas do Terror", há outras antiguidades que merecem uma espiada. "A Noite do Demônio", apesar de um ridículo monstrengão soltando fumaça pelas ventas, é um sofisticado prato para psicanalistas elaborado por Jacques Tourneur, mestre dos tons cinzentos e dos passos perdidos na neblina.

    Como sempre, há um personagem cético, científico –o psicólogo americano John Holden, interpretado (?) por Dana Andrews. Como sempre, o sujeito é de uma burrice exasperante. Mas o filme parece brincar com isso, desde a primeira sequência –em que o psicólogo, tentando dormir no avião que o leva à Inglaterra, tenta de vários modos cobrir o rosto para proteger-se da luz.

    As relações da modernidade americana com o passado inglês entram em jogo, na maldição de um manuscrito que todos querem passar adiante. Herança maldita: eis um título genérico que poderia servir a centenas de filmes de horror.

    Pobres deputados e pastores homofóbicos. Que herança maldita eles carregam... Ninguém controla seus próprios pesadelos; o pior é quando se acredita neles.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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