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    Marcelo Coelho

    História submersa

    12/11/2014 02h00

    O barco verde-claro, atravessado de banquinhos azuis, está parado num rio dividido ao meio. Do lado esquerdo, a água é mais escura do que o mar. Tudo é vermelho, como ferrugem ou folha morta, na diagonal que corta a foto à direita.

    É que no rio se reflete a ruína de uma construção de tijolo, ritmada por janelas em forma de ogiva que lembram, justamente, a quilha de uns tantos barcos verticais. Acima da grande construção, que poderia ser confundida com uma arca de Noé recuperada de um naufrágio, o céu azul e cinza não promete chuva.

    A fotografia de Joel Silva apareceu na primeira página da Folha de domingo, e retrata o reservatório de Itaparica, perto da cidade pernambucana de Petrolândia.

    A seca no lugar baixou tanto o nível das águas que ressurgiu aos poucos a grande igreja do Sagrado Coração de Jesus, que dominava a cidade antiga. Em 1989, a construção de uma represa fizera com que tudo submergisse.

    Nas primeiras páginas de seus "Souvenirs d' Enfance et de Jeunesse" ("Recordações da Infância e da Mocidade"), o escritor Ernest Renan (1823-92) evoca uma imagem semelhante, atribuída por ele ao folclore da Bretanha, região tempestuosa e marítima do noroeste da França.

    A lenda é sobre uma suposta cidade de Is, "que, em tempos desconhecidos, foi engolida pelo mar".

    "Aponta-se, em diversos cantos da costa, a localização daquela cidade fabulosa, e os pescadores dela contam estranhas coisas. Nos dias de tormenta, asseguram, pode-se ver, entre as elevações das vagas, as flechas nas torres de suas igrejas; nas horas de calmaria, ouve-se subir do abismo o som dos sinos, modulando o hino da manhã."

    Renan compara tais aparições às atividades da memória.

    "Ocorre-me com frequência que tenho no coração uma cidade de Is, a soar ainda os sinos obstinados que convocam para o ofício sagrado os fiéis que não escutam mais."

    A imagem de uma "catedral submersa" tinha, para Renan, conotações pessoais: estudara para ser padre, mas uma crise de convicção o fizera, aos 21 anos, abandonar o seminário.

    Natural que o passado, para ele, ganhasse os contornos vagos de uma igreja entrevista nas ondas do mar, e que seus apelos soassem como sinos distorcidos sob a cobertura de águas calmas.

    Renan tornou-se um crítico rigoroso, mas amável, da religião de sua infância. Esse seu espírito de benevolência terá contribuído para que não desse, a respeito da lenda de Is (ou Ys, como fica mais bonito), a versão mais lúgubre.

    Teria sido um mosteiro medieval, cujos monges se entregavam a excessos, crueldades e pecados; a providência divina houve por bem promover sua destruição, numa sorte de dilúvio localizado. Uma vez por ano, a edificação pesadamente se eleva das águas para soar os dobres da penitência.

    Não é desse modo, por certo, que Debussy imagina o milagre num de seus prelúdios para piano. A catedral renasce com a luz de um dó maior, "sonoro e sem dureza", como indica a partitura.

    Mas por um longo momento, no baixo, as teclas negras de um sol e de um fá sustenidos se grudam como argila na radiação da música, e a tonalidade clara ganha um peso de turvação e dúvida.

    O velho claustro repetirá, todo ano, sua insurgência lutuosa e seus toques de finados.

    Embora a seca seja preocupante, e por mais que tenha sido triste para os habitantes de Petrolândia ver sua antiga cidade destruída, é bonito ver nesta semana o barqueiro cruzar sem medo a superfície daquelas águas sem fantasmas.

    A memória pode ser ressurreição, mas pode também ser um sintoma. O passado vencido se ilumina; o passado que não ajustou suas contas é sempre uma assombração.

    A Comissão da Verdade, encarregada de investigar os crimes cometidos durante a época da repressão política, vai encerrando seus trabalhos. Haveria muito a comentar sobre o assunto: há a proposta de rever a anistia, há a questão, que não tem por que ser evitada, dos excessos protagonizados pela própria esquerda.

    O que mais me chama a atenção, todavia, é um fato bem simples. Os antigos guerrilheiros parecem, ou pelo menos se preocupam em parecer, sem disposição para repetir o que fizeram.

    Os torturadores, e seus prósperos adeptos no mundo civil, não dão mostras de nenhum arrependimento. Torturariam de novo, dia a dia, unha a unha, osso a osso; eles não anistiaram ninguém. O sangue de que estão cobertos não seca nunca.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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