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    Marcelo Coelho

    Relatos selvagens

    19/11/2014 02h00

    A vingança é um prazer, dizia o personagem de uma ópera de Mozart. Esquecer a humilhação, o ultraje? Seria baixeza, atitude de quem não tem senso da própria honra.

    De minha parte, não me sinto muito inclinado a me vingar de quem quer que seja. Mas que o desejo existe, existe. Talvez me falte a oportunidade de descontar velhas ofensas recebidas –em especial as dos tempos escolares.

    Mesmo que a ocasião surgisse, entretanto, o provável é que me faltasse coragem para cobrar as dívidas do passado. Pior: se continuo a lembrar o mal, talvez imaginário, que me foi feito, o agressor já o esqueceu.

    Não, a vingança não traz prazer nenhum; o mais provável é que ofereça apenas o alívio de não se conviver mais com o rancor, o ressentimento, aprisionados na garganta.

    Há outra maneira de obter esse alívio, naturalmente: trata-se do perdão.

    Bela palavra; mas perdoar não é tão simples quanto parece. Faz pouco sentido, para mim, a indulgência que se possa ter à noite, entre uma oração e outra, dirigida a ofensores indeterminados. "Perdoo todo mundo", penso, numa imitação preguiçosa da generosidade divina. Desse modo, não perdoei ninguém.

    Assim como a vingança, o perdão precisa ser pessoal, cara a cara; o perdoado precisa saber que o foi. Fez-se um contrato entre nós; combinei com meu agressor que estamos prontos a um novo começo.

    Se esse começo é impossível, isto é, se é de vingança que se trata, surge um problema. Quanto tempo dura a vingança? Se eu simplesmente matar meu agressor, será que isso compensa os longos anos de humilhação que ele me fez sofrer?

    Devo calcular minha compensação pelo tempo de dor que ele me infligiu, ou pelo tempo que me custou para me vingar dele?

    Escrevo pensando no que dizia um personagem de "O Segredo dos Seus Olhos", grande filme argentino que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010. A mulher dele tinha sido barbaramente assassinada; ainda assim, ele não concordava com a pena de morte. Uma injeção indolor, com todas as garantias constitucionais, nada teria de proporcional ao crime cometido.

    O tema da vingança reaparece, em tom mais fantasioso e divertido, em outra produção argentina. "Relatos Selvagens", de Damián Szifrón, reúne várias histórias curtas, sem cair no problema clássico desses filmes de episódios –que é o de estar sempre perdendo e retomando o próprio ritmo.

    Os desfechos de cada episódio precisam ser cabais, não pode sobrar nada de solto no fim de cada história, sob pena de o espectador se frustrar, sem saber direito se chegou ao desfecho do que se estava contando.

    Nada evita melhor esse risco do que a realização de planos tremendos, absurdos, de vingança –e, de fato, não resta pedra sobre pedra depois que os personagens de "Relatos Selvagens" se dedicam ao que pretendiam fazer desde o começo.

    Mesmo nas cenas mais violentas, como a da luta de vida ou morte que se segue a uma simples desavença entre dois motoristas, o humor prevalece no filme –dada a desproporção entre o insulto e a resposta.

    O indefectível Ricardo Darín está no seu papel: o pai de família comum, às voltas com a força impessoal das circunstâncias argentinas.

    Em "O Segredo dos Seus Olhos", certamente o trauma da ditadura estava em jogo. Ainda que a história se refira a violências anteriores ao governo militar, o problema da punição dos criminosos de Estado se colocava com clareza.

    Em "Relatos Selvagens", a luta se dá em outros campos: a traição amorosa, a cegueira dos burocratas, os traumas da infância, a arrogância dos mais ricos.

    Seria arriscado ir longe demais nas comparações, mas não dá para deixar em silêncio o quanto esse tema parece distante da mentalidade que prevalece no Brasil. Ainda que, ao contrário daqui, chefes militares argentinos tenham sido punidos, a vontade de vingança parece mais presente por lá.

    Será porque tudo continua dando errado para a classe média, ou porque um passado sempre melhor do que o presente ainda assombra os argentinos? No Brasil, mesmo a recessão não tira a perspectiva de que no futuro as coisas serão melhores.

    Ou simplesmente não há vontade de enfrentar coisa nenhuma; volto à confidência pessoal –não perdoo nada, não me vingo tampouco. A paralisia me coloca entre o passado e o futuro, ambos além do meu alcance.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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