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    Marcelo Coelho

    Tiques e taques

    04/02/2015 02h00

    Qual seria a história mais simples do mundo? Ou, para modificar um pouco a pergunta, qual o modelo de enredo mais básico que se pode imaginar?

    Para o crítico literário sir Frank Kermode (1919-2010), a resposta poderia bem ser o tique-taque de um relógio. O tique, escrevia ele em "The Sense of an Ending", corresponde "a uma humilde gênese", e o taque, "a um débil apocalipse".

    Claro: na alternância desses dois ruídos, há um começo e um fim. Isso todo mundo pode ver, ou melhor, pode ouvir. O mais interessante não está no som que o relógio "objetivamente" produz.

    Com alguma honestidade, poderíamos reconhecer que o barulho do relógio é apenas "tique-tique"; a batida é sempre igual.

    Se chamamos isso de "tique-taque", é porque já estamos inventando uma historiazinha para o nosso relógio; já produzimos uma forma, extremamente elementar, sem dúvida, de ficção.

    Mais ainda, essa "narrativa" tem um sentido. Por mais vago que seja o "conteúdo" dessa sequência de ruídos, sabemos o que esperar: sabemos que depois de um "tique" deve vir o "taque".

    Kermode usa o exemplo para mostrar que uma história, um romance –e mesmo a nossa própria vida– não podem se resumir a uma sucessão temporal. Um dia depois do outro, um tique e outro tique em seguida, não levam a lugar nenhum.

    O "sentido" da história exige um mínimo de ficção, de imaginação, de propósito, para que não se esgote na mera passagem mecânica do tempo. A ficção humaniza, e dá forma, ao escoar desorganizado dos instantes e dos dias.

    Ou, como diz Kermode lindamente, o romancista é sempre um "herdeiro de dom Quixote, inclinando-se na sua cavalaria desesperada contra os invariáveis moinhos de vento de uma realidade submissa ao tempo cronológico".

    Resumindo, a mera realidade do dia a dia, sem projeto, sem ficção, perde o sentido –e foi mais ou menos isso o que eu estava dizendo quando reclamei do filme "Boyhood", no artigo da semana passada.

    Por mais fiel que seja à realidade de um adolescente americano, "Boyhood" não convence, porque ninguém, na vida real, é tão "real" assim.

    Somos todos personagens de nós mesmos: contribuímos com nossas invenções, nossas ilusões, nossos projetos, para construir o que somos de fato. Sem essa ficção, seríamos apenas fantasmas cronológicos, arrastando atrás de nós as correntes do calendário.

    Elaboro do meu jeito o que estou lendo num livro ao mesmo tempo audacioso e cheio de bom senso, escrito pelo ensaísta e antigo colaborador do jornal "O Estado de S. Paulo", Gilberto de Mello Kujawski.

    Chama-se (apenas!) "O Sentido da Vida", e sai agora em segunda edição revista pela editora Migalhas.

    "Não, a vida não tem nenhum sentido", começa o autor. "A vida não tem lógica, acontece a esmo, sempre imprevisível, sem nenhum traço de racionalidade."

    Como faz bem (a mim, pelo menos), topar com afirmações tão claras e corajosas logo na abertura de um livro assim... É como se abríssemos a janela para deixar entrar um vento de inverno -de que estamos mais precisados do que nunca nestes dias.

    Mas é claro que Kujawski não se limita a esse efeito de choque –e logo estaremos admitindo, junto com o autor, a presença de seu velho mestre, o filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955).

    Com muita clareza, "O Sentido da Vida" mostra o quanto já havia de "sartreano" nas primeiras obras de Ortega y Gasset –incluindo-se aí a famosa noção de que o ser humano "está condenado à liberdade". Mais importante ainda é a ideia de "projeto".

    Não se trata, é claro, de um mero "capricho": posso desejar ardentemente ser um grande pianista, mas não serei capaz de inventar um Marcelo-pianista que não sou.

    Ao mesmo tempo, para viver a própria vida, é preciso construí-la. "A vida nos é dada", diz Kujawski, "mas não nos é dada feita".

    Desse modo, completa o autor, inventamos, dia a dia, o que vamos ser. Mas essa frase seria algo banal (e também irrealista), não fosse um adendo importantíssimo. Essa invenção se dá conforme aquilo que somos.

    Uma pessoa tem (muito teoricamente) a liberdade de ser qualquer coisa –mas o que importa é que ela se transforme naquilo que tem de ser.

    Mal comparando, isso deveria ser tão fácil quanto cada um ter sua própria voz. Mas sabemos, infelizmente, o quanto estamos à mercê de uma dublagem constante, que nos ensurdece para nós mesmos.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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