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    Marcelo Coelho

    Feche os olhos e siga em frente

    18/02/2015 02h00

    Será que estou lendo demais alguns colunistas da Folha? O fato é que ando me sentindo bem durão ultimamente.

    Não me chocaram, por exemplo, as incontáveis detonações de cabeças, os corpos esmagados na lama pelo peso dos tanques, as canelas ceifadas por metralhadoras que, junto com a tenebrosa trilha sonora, fazem a força de "Corações de Ferro".

    No filme de David Ayer, que se passa nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, fiquei quase o tempo todo a favor de Brad Pitt, sem entender os problemas morais de seu pupilo Logan Lerman, que hesita em matar oficiais da SS.

    Incluído, não se sabe bem por quê, no pelotão de ogros liderado por Pitt, o rapazinho foi treinado para ser datilógrafo. Estão todos a bordo de um tanque indestrutível, avançando pelas estradas de uma Alemanha que se recusa a admitir a própria derrota.

    Das árvores, pendem corpos de mulheres enforcadas. São mães que não concordavam com o alistamento compulsório de seus filhos (crianças de oito ou dez anos), no esforço final da guerra. Traidoras da pátria, dizem os cartazes hitleristas.

    Nosso jovem datilógrafo vê esse atestado de loucura e desumanidade. Mas demora para se convencer de que, naquele caso, só metralhando mesmo. Será que ele não sabia o que era o nazismo?

    A essa altura do filme eu já estava impaciente com os escrúpulos do garoto. Matar os canalhas, ainda mais com o charme de Brad Pitt, era naturalmente a coisa certa a fazer.

    Meus sentimentos pioraram em "Sniper Americano", a última patriotada sentimental de Clint Eastwood. O humanismo de Chris Kyle (Bradley Cooper) me parecia ainda mais deslocado.

    O bom soldado texano, que se destaca pela pontaria infalível, está de tocaia para defender seus parceiros na invasão americana do Iraque. Do topo de um prédio miserável, vê uma mãe muçulmana ao lado do filhinho, de seis ou sete anos.

    Não se iludam! O menino acaba de receber da mãe um poderoso explosivo, que será arremessado, claro, contra os rapazes de Bush.

    Nosso herói tem a arma apontada contra a cabeça do pequeno jihadista. O que fazer? Ele pensa; ele se emociona; ele sofre.

    Minha atitude foi diversa. Ora bolas. Criança ou não, trata-se do portador de uma bomba. É atirar na cabeça, sem demora.

    Não é que eu estava ficando mais malvado do que Brad Pitt? Resolvi respirar um pouco e tomar um Toddynho, até recuperar o meu antigo self.

    Obviamente, eu não tinha me transformado em nenhum Mr. Hyde. Esses dois filmes apenas tinham exagerado a correção política de seus protagonistas.

    Criam-se situações irrealistas, dilemas éticos hiper-intensificados, hesitações fora de propósito, para que o mais inofensivo dos espectadores termine aceitando, recomendando, celebrando, o uso da violência.

    O exagero não fica impune, contudo. "Sniper Americano", pelo menos, tropeça em omissões e eufemismos.

    Chris Kyle é um personagem da vida real, que passou por dificuldades psicológicas ao voltar do front. No filme, essas dificuldades se resumem ao mínimo. Uma rápida cena de impaciência na maternidade, por exemplo, quando a enfermeira do berçário não o escuta através do vidro.

    Convenhamos: o mesmo sujeito que sofreu diante da possibilidade de matar um menino jihadista revela-se bem pouco frágil se seus traumas de guerra se limitam a isso.

    Declara, aliás, que não se arrepende de nenhum tiro que deu. Não viu nenhum inocente ser morto no Iraque? Nada que o fizesse questionar a presença americana por ali?

    Seus dramas ficaram enterrados no começo do filme. Já seus acertos de pontaria justificam um final apoteótico, com dezenas de bandeiras americanas celebrando o herói sem trauma e sem reproche.

    Mas que desfecho capenga! Um ex-combatente aparece na casa de Chris. Esse visitante deveria ser o verdadeiro foco do interesse do filme: nele se concentram a loucura, o trauma, a violência que a "verdadeira" história de Kyle reprimiu.

    Nada será mostrado ao espectador: os letreiros nos dizem, sumariamente, o que aconteceu naquele dia.

    Feche os olhos e siga em frente: novos inimigos estarão à nossa espera, e por mais mortes que tenhamos nas costas, a pureza de nossa moral não será posta em dúvida. A não ser pelos idiotas. Todos politicamente corretos, é claro.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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