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    Marcelo Coelho

    A água e o espírito

    25/02/2015 02h00

    Assim como o cão da história clássica, que manifesta gratidão a seu dono porque este, por um dia, esqueceu-se de surrá-lo, a volta das chuvas me traz mais felicidade, por uma tarde, do que toda a inquietação criada por semanas de tempo seco.

    É também este o sentimento produzido pelo horário de verão. Olho o relógio; apresso-me, estou atrasado. Mas, calma, não era nada disso: eu é que tinha descurado de acertar o ponteiro na noite de sábado.

    Que alívio! Comemoro essa vitória sobre o nada.

    Os reservatórios continuam em estado crítico, segundo os especialistas. Não importa. A normalidade não se mede mais em metros cúbicos de água, mas no acontecimento meteorológico, no fato climático –ia dizendo: na decisão celeste– em si.

    A seca, o pó, a areia, o deserto, o horizonte tórrido e vazio sempre foram, bem sabemos, máquinas de criar misticismo na alma humana.

    Pego então para ler, ao anúncio dos primeiros pingos de chuva, uma das "Cinco Grandes Odes" do poeta católico francês Paul Claudel (1868-1955). Chama-se "A Água e o Espírito", e foi escrita em Pequim, em 1905.

    Diplomata, tendo passado bom tempo aqui no Brasil, Claudel começa esse longo poema com uma expressão de mal-estar.

    Ei-lo dentro de um palácio "da cor da angústia", onde as árvores dão sombra a um "trono apodrecido". "Habito", continua Claudel, "de um velho império o escombro principal".

    Nada mais em declínio, por certo, do que a China em 1905. Mas que império, o português, o espanhol, o francês, o inglês, o russo, poderia passar por um teste de saúde eterna?

    Dada a transitoriedade dos poderes políticos, o poeta procura a permanência em outra parte.

    Em vez de ficar "na terra mais terrena", onde sopra um velho "vento amarelo", de cinza e de poeira –poeira "que foi Sodoma, que foi Paris, que foi Tadmor e Babilônia"–, Claudel abandona as "coisas criadas" e decreta seu pacto com "aquilo que as criou".

    Trata-se do "espírito líquido e lascivo". É, antes de tudo, o mar, a "grande rosa cinzenta" que, ela própria, tem sede, e chama para si "o Ganges, o Mississipi, o tufo espesso do Orenoco, o longo cordão do Reno".

    Claudel se compara a essa enormidade líquida, o mar "crucificado em seu milhão de braços por seus dois continentes". Entre a China e Paris, a divisão real de que o poeta se ressente haverá de se dissolver, num sonho de unidade aquática e católica.

    Mas essa identificação com a força aquática não se confunde com um gesto de revolta, com uma torrente destrutiva e diluviana. Claudel é um poeta mais amigo das represas que dos furacões.

    "A chave que liberta", diz ele, "não é a que abre, mas a que tranca". Deus será, para ele, como para tantos outros, "uma forte muralha", a partir da qual todas as coisas poderão ser vistas em sua "distância e proporção".

    Por isso mesmo, prossegue o poeta, foi possível "estender sobre o mundo inteiro a rede de meu conhecimento". E tudo se torna contínuo nessa ligação de água; tudo, até mesmo a relação entre o corpo e a alma.

    "Meu coração não bate mais o tempo", diz Claudel, e "o espírito imperecível abarca as coisas passageiras".

    Passageiras? Mas elas sempre recomeçam! A terra, o céu, as árvores que se inclinam sobre o rio, tudo isso "é a eternidade". Claudel afirma que "a liberdade de não ser" foi retirada, foi suprimida, de cada coisa que existe.

    O poema, como se pode adivinhar, é longo e complexo. No início, havia a sensação da ruína, da secura das coisas terrenas. O ímpeto criador e vivificante da água é invocado. Mas presume a obediência, a aceitação de tudo o que existe.

    Daí resulta, ao menos, um consolo: tudo o que existe, porque foi criado, tem parte no eterno; não pode deixar de existir.

    Fecho o livro de Claudel. Voltam as chuvas; numa aparência de reequilíbrio, o índice de precipitação de fevereiro bate recordes, como a compensar (mas nem tanto assim) a seca de antes.

    É como se alguma harmonia se estabelecesse. Sinto vontade de agradecer pela recuperação, embora mínima, do Cantareira. A sensação não deixa de ter um fundo religioso. Não por acaso, durante a crise hídrica, São Pedro é tantas vezes mencionado. Vai ver que, no fundo, todos acreditam mesmo nele.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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