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    Marcelo Coelho

    Convicções desnatadas

    01/04/2015 02h00

    Por algum motivo, não sei se excesso de chuva ou de tempo seco, se alta na demanda ou baixa no consumo, andou faltando leite desnatado aqui perto de casa nestes dias.

    Nada de Corpus, Molicos ou qualquer outra marca de renome. Topei só com uma caixinha daquelas simples, que exigem tesoura e muito cuidado para que o leite não derrame pela pia ao abrir.

    Tratava-se do leite desnatado Dália; o nome era simpático, e gosto das marcas menos conhecidas. Meu carinho pelo produto aumentou quando, já em casa, vi as fotos e explicações na parte de trás da caixa.

    Informavam-me que o tal leite era "propriedade" da família de Décio Bayer, da Fazenda Vila Nova. Em bom tamanho, ali estava a foto de todos: um garoto pré-adolescente no primeiro plano, a mãe ou a avó com a mão em seu ombro. Duas mulheres e dois homens sorriam na fileira de trás. O mais jovem, de boné azul, acariciava com a mão direita o pescoço de uma vaca.

    Essa, portanto, era a família de Décio Bayer! Outra foto em destaque mostrava uma paisagem verdejante: tratava-se do rio Taquari, "banhando os municípios de Roca Sales e Arroio do Meio (RS)".

    Conto tudo isso com certa hesitação. É como se eu estivesse sendo indiscreto, ao conferir destaque à pequena família de produtores gaúchos. Mas é provável que não se incomodem.

    Mostram a foto não só porque se orgulham do leite produzido, mas também porque, de alguma forma, se responsabilizam pela qualidade da mercadoria.

    Antigos anúncios de uma rede de hotéis mostravam o dono na TV, sorridente, careca, num paletó castanho, assegurando que só ele se dispunha a dar ao empreendimento seu próprio nome de batismo.

    Não muito diferente disso, o falecido comandante Rolim assinava embaixo, por assim dizer, de todos os voos da TAM.

    Por que fico tão surpreso com essas demonstrações pessoais de orgulho e propriedade? É que, educado em finais dos anos 1960, numa família de esquerda moderada, aprendi muito antes de entrar no colegial e na faculdade a ver com desconfiança tudo o que viesse da classe empresarial.

    Não eram eles que sustentavam a ditadura? Não se recusam a dar aumentos de salário? Não esmagam os sindicatos? Não vivem uma vida de alto luxo graças ao que tiram dos trabalhadores?

    O leitor contemporâneo que me desculpe, mas nessas poucas perguntas se resume meu DNA ideológico –por mais que, na vida prática, minhas condições econômicas tenham sido até mais privilegiadas do que as de qualquer produtor leiteiro.

    Com o tempo, fui aprendendo e imaginando o quanto de energia, de planejamento e de capacidade organizacional é necessário para pôr de pé, funcionando diariamente, qualquer cafeteria, fabriqueta, oficina ou fazendola.

    Ainda assim, os grandes temas da humanidade –democracia, igualdade social, difusão do conhecimento e da cultura, fim da guerra e da violência– não me pareciam compatíveis com uma classe social que se dedica a maximizar seu lucro privado. Tudo isso teria de vir da pressão dos mais pobres, com a mediação civilizada, nunca ditatorial, do poder público.

    Faço um resumão porque, hoje em dia, esse tipo de convicções acaba parecendo limitado e arbitrário. Em parte, é mesmo. Com arranjos e revisões, esse meu DNA tenta se adaptar aos novos tempos.

    Às manifestações de março, por exemplo. Em junho de 2013, "minha turma" também estava nas ruas. Agora, é mais difícil encontrá-la; fico de pé atrás.

    Um manifestante pode, entretanto, me responder: não sou de direita. Não quero golpe. Não quero impeachment. Sou um pequeno empresário, produzo leite, conserto carros, sou decente, democrata, e condeno, como você, a corrupção. Será que eu não tenho direito de me manifestar? Por que você, como tantos da imprensa, carrega esse preconceito contra mim?

    Vejo novamente a foto da família gaúcha, com sua vaca. O retrato não pode ser mais decente, mais bem intencionado, mais claro em seu desejo de construir um bom país.

    Sem raiva e com todo o carinho possível, meu DNA guarda entretanto uma pergunta. Será que não há nenhum empregado naquela fazenda? Quem entra, e quem não entra, na fotografia que se quer deixar para o futuro?

    Minhas lentes, sem dúvida, devem precisar de uma troca de tempos em tempos. Mas a questão pode não ser só de grau –o ângulo e o ponto de vista também ajudam, acho, a compor um quadro mais completo.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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