• Colunistas

    Sunday, 05-May-2024 11:54:20 -03
    Marcelo Coelho

    Queda de temperatura?

    15/04/2015 02h00

    O mordomo. Assim o colunista e cientista político André Singer qualificou a figura de Michel Temer, escalado para ser o articulador político de Dilma Rousseff.

    A comparação tem bons motivos. Há algo de subserviente e de discreto em Michel Temer. Singer vai compondo, em suas colaborações para a Folha, uma galeria de personagens esquisitos, quase sinistros. Antes do "mordomo", já havia um certo "Mãos de Tesoura" (Joaquim Levy), encarregado de cortar o possível e o impossível no orçamento federal.

    Se o cenário assume tons de pesadelo ou de filme de horror –em especial para quem acreditou nos compromissos da campanha eleitoral–, cabe entretanto acrescentar uma visão menos catastrófica da crise política.

    Por mais que Michel Temer tenha o "physique du rôle" para transitar entre a sala e a cozinha, servindo acepipes aos convidados, a imagem do "mordomo" só fica completa se lembrarmos da velha máxima das histórias policiais: ele será sempre o culpado.

    De certo modo, a ascensão de Temer e Levy pode contentar, a curto prazo, tanto governistas quanto quem está na oposição. Para o PT, Dilma Rousseff foi se revelando um peso difícil de carregar. Torna-se possível preservá-la de críticas mais severas, ao mesmo tempo em que a distância entre as preferências de Dilma e os "verdadeiros ideais do partido" será apontada sempre que necessário.

    Do ponto de vista da oposição, consegue-se diminuir a influência dos poucos petistas que tentavam tocar a coordenação política do governo.

    Criou-se na verdade um paradoxo em torno de Dilma Rousseff. Em geral, todos concordam que a presidente não é diretamente responsável pela corrupção na Petrobras nem pelo agravamento da crise econômica. Ao mesmo tempo, torce-se para afastá-la da condução prática das atividades de Estado.

    Não parece haver nada de pessoal contra Dilma (não como havia contra Lula, por exemplo), e ao mesmo tempo tudo se atribui à sua personalidade: inábil, turrona, impossível de conviver. As decisões tomadas não dependem diretamente de sua vontade –mas sobre ela se concentravam todas as atribuições de culpa.

    Terá sido já em função do papel de maior destaque exercido por Temer e Levy que as mobilizações deste domingo foram mais modestas? O "Fora Dilma", bem ou mal, vai acontecendo na prática, e se o "fora PT" não ocorreu, os poderes de Eduardo Cunha ou Renan Calheiros parecem maiores do que os de qualquer "companheiro".

    Há naturalmente o desgaste trazido pela passagem do tempo. Um mês entre uma manifestação e outra dilui a sensação de um "crescendo", e não se registraram fatos especialmente mobilizadores no que diz respeito ao petrolão.

    Embora uma porcentagem impressionante de brasileiros, segundo o Datafolha, seja favorável ao "impeachment" da presidente, o tema caiu um pouco de moda. O "fora Dilma" parece mais um desabafo do que um programa de ação política –e nenhum partido de oposição tem ímpeto para levá-lo adiante.

    Ainda que nada confortável, a situação do governo se estabiliza. A crise vai esfriando. Há, sem dúvida, o fator econômico para piorar o cenário nos próximos meses. Mas o que preferir: desemprego crescente ou mais inflação? Grande parte dos que recebem rendas (e estes não são poucos no Brasil) sofre mais com a inflação, e talvez reconheça os resultados favoráveis de uma política recessiva e do aumento de juros.

    O desemprego pode impor grande desânimo e desespero, não apenas sobre suas vítimas imediatas. O descontentamento pode se sentir de muitas formas, até nas classes mais ricas. A qualidade dos serviços decai, se um restaurante ou uma loja resolvem cortar mão de obra.

    Não conheço estatísticas a respeito, mas ainda assim me parece provável que a impopularidade de um governo dependa mais do aumento de preços do que da baixa atividade econômica.

    Inflação e corrupção têm, por assim dizer, algo de mais "intencional": é o governo tirando dinheiro do seu bolso; o baixo crescimento seria resultado de muitos fatores, aparentando ser quase que uma fatalidade, ou uma situação meteorológica.

    Em outros tempos, o PT tinha o FMI e os bancos internacionais para responsabilizar pelo que acontecia de ruim na economia. Tendo alcançado o poder, e vivendo mais uma maré de escândalos, o partido de Lula parece automatizar-se numa sistemática negação das próprias culpas. Estava na hora, com efeito, de colocar um mordomo em cena. coelhofsp@uol.com.br

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024