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    Marcelo Coelho

    Lado B

    25/04/2015 11h25

    Ainda sobre a volta do vinil, alguns leitores fizeram comentários que ampliam o horizonte da interpretação.

    Veio a lembrança de um tempo em que as pessoas se reuniam apenas para ouvir discos -coisa que não sei bem por que faz sentido com os LPs, mas não com CDs e muito menos com arquivos de computador.

    É que talvez o LP tenha algo a ver não só com a prática de tocar instrumentos musicais, como escrevi no artigo, mas também com certa ritualização. A volta do vinil teria relações com o movimento "slow food", por exemplo. Há preparo e expectativa quando, com cuidado, movemos o braço da vitrola para que a agulha aterrisse no ponto certo da pista.

    Não chego a ponto de curtir a crepitação e o chiado dos discos, mas, por falar em slow food, o charme da vitrola também se aparenta com o do fogão a lenha. Bem menos prático, mas sempre um atrativo quando estamos com tempo de sobra.

    O psicanalista Sérgio Zlotnic, em seu blog para a Escola Paulista de Teatro vai mais longe:

    "Não há calor nem engano numa tela de computador. A máquina não tem alma. Eis por que a tecnologia é de uma objetividade desumana. O digital é mais perfeito (e mais moderno) que o analógico. Isso não quer dizer que seja melhor. A propósito, há quem prefira vinil a CD.

    Alguns músicos garantem que a antiga bolacha conserva imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais...

    Talvez isto queira dizer que entre perfeito e sublime há distância."

    Ele continua, por outros caminhos, num sutil elogio da imperfeição:

    Na psicose, note-se, os delírios e as alucinações são mais-que-perfeitos e de uma nitidez atordoante - por isso veiculam uma realidade não distorcida, por assim dizer: realidade sem ambiguidades. O real traduzido em estado bruto.

    De fato, o "erro" do psicótico é o fato dele levar tudo ao pé da letra. Ele não se submete à "nossa" gramática. Nós, castrados que, nalgum dia mítico, implicitamente combinamos de falsear um pouco todas as coisas, coletivamente, numa espécie de devising primevo.

    O psicótico não foi cooptado por esse coletivo. A metáfora, na psicose, é tomada sempre em seu sentido literal. Como se o louco sofresse por uma falta de erro! Ou por uma defasagem de ritmo... Defasagem de ritmo. Defasagem de ritmo. Defasagem de ritmo. Defasagem de ritmo.

    O jazzista Dave Brubeck (1920 - 2012) traduz essa questão do acerto e do erro na sua famosa composição "Take Five". Ele acrescenta na música um tempo ali na batida (o cinco!), de maneira que escutamos um som muito próximo do aleatório, sem nunca desandar no caos. Mas isto, claro, é ilusório: dá uma impressão de quase-erro no acerto, façanha genial.

    veja o vídeo

    Nos processos criativos, é preciso ter cautela com o excesso de inteligência: o resultado bem-sucedido é consequência necessária de um descontrole. O sucesso ocorre (repetindo) sem querer! (na clínica, igualmente, a esperteza do analista parece ser nefasta ao tratamento...). A criação de valor é (quase) involuntária - condição de autonomia da obra.

    Gosto do "quase". Sem dúvida, se tudo na obra for voluntarismo do autor, a obra se tornará mecânica, propagandística, etc. Só que voluntarismo não é sinônimo de controle, entretanto, nem de inteligência. Há inteligência em ouvir, em se dobrar às circunstâncias, em obedecer ao material... Como um psicanalista quando escuta seu paciente. Por aí entra, eu acho, a autonomia da obra: o que foi criado só pode ter sido criado porque a criação obedeceu a uma percepção, a uma escuta do mundo -algo que, antigamente, poderíamos chamar de inspiração.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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