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    Marcelo Coelho

    Cores para gente grande

    29/04/2015 02h20

    Entram na moda –com boa dose de marketing para ajudar– os livros para colorir destinados ao público adulto. Por que não?

    A ideia me pareceu simpática; há coisa de poucos anos, aprendi a passar longas tardes de chuva em hotéis-fazenda, ao lado dos filhos pequenos, "pintando" (como alguns gostam de dizer) desenhos previamente impressos para esse fim.

    Anõezinhos, cavalos, pescarias, pouco importa: descobri, com atraso, que é possível misturar muitas cores numa só casca de árvore, num único gramado, num mesmo mar.

    Nada é simplesmente verde, azul, ou marrom –sendo possível cobrir de riscos roxos, sombras de laranja ou véus de rosa o dorso curvado de um urso ou perfil de uma montanha.

    Boa terapia. Uma música na vitrola e mãos à obra. Sem contar com o prazer de ter à disposição um daqueles estojos grandes de lápis de cor. Admitem, não digo cinquenta, mas bem uns seis ou oito tons de azul ou de amarelo. Recupera-se o arbítrio da escolha, a dúvida irisada do capricho.

    Mas por que tal tipo de atividade nos parece interessante de uma hora para outra?

    Talvez tenha algo em comum com o tema que abordei aqui na semana passada, a volta dos discos de vinil.

    De tanto usar o computador, é provável que as pessoas estejam sentindo falta de certa materialidade nas coisas. O mesmo processo, imagino, faz com que mesmo os entusiastas do micro-ondas e da comida congelada também gostem de cozinhar e tenham respeito pelo fogão a lenha.

    Usar as mãos fora do teclado; sujá-las, e com isso sujar os objetos em volta –LPs, panelas, papéis. Apontar um lápis, descascar uma batata, amassar um pão.

    Trata-se da vingança, ou do reequilíbrio, do "manual" sobre o "digital". Percebo, aliás, que algumas pessoas começam a enjoar do sistema "touch", voltando ao teclado e ao mouse para não batucar duramente uma tela sem relevo, insensível, inelástica.

    Só que os livros de colorir para adultos, até onde pude verificar, decepcionam um bocado.

    Presumem uma cabeça detalhista, mais voltada para o bordado que para a matéria própria da cor.

    Imagina-se que o adulto, por ter maior coordenação motora, irá divertir-se pintando de tons diferentes cada minúscula folhinha de uma guirlanda, cada segmento ínfimo de mandala, cada milímetro repartido de asa de borboleta.

    Entra-se no mundo, a meu ver aflitivo, daqueles quebra-cabeças de cinco mil pecinhas –quando o prazer deveria estar na indisciplina, na imprecisão, no que há de imperfeito e de verdadeiro no contato com uma massa de cor.

    Felizmente, quem quiser esse tipo de contato pode inspirar-se de outra forma. Uma retrospectiva do pintor abstrato irlandês Sean Scully está em cartaz na Pinacoteca do Estado, até dia 28 de junho.

    Depois de um começo em que seus quadros pareciam imitar engradados ou treliças, produzindo aquela conhecida ilusão de ótica em que se imagina ver um quadradinho na intersecção de duas barras perpendiculares de cor, o artista foi-se libertando da régua e da minúcia.

    Com diferentes materiais (aquarela, ferro, óleo, madeira) e tamanhos que vão do mural ao porta-retrato, Scully faz quadros que parecem, pelo desenho, o esquema de um assoalho antigo de madeira.

    "Tacos" horizontais formam um quadrado de tamanho razoável na tela, que se alterna com outro quadrado formado de "tacos" verticais.

    É um pouco repetitivo, claro, e seria monótono, se o pintor não fizesse pelo menos duas coisas acontecerem em seus quadros.

    A primeira coisa é um desencaixe, uma instabilidade entre os diferentes conjuntos de "tacos", de modo que alguns quadrados e retângulos parecem invadir um espaço que não lhes pertencia.

    O aspecto "calmante" de muitas pinturas se vê, desse modo, pego em contratempo, em descompasso, em extra-sístole.

    A segunda, e mais importante, fonte de vitalidade na geometria desses quadros é a que se faz pelo aparecimento de várias camadas de cor.

    Uma composição de retângulos creme e caramelo, ou uma parede de tijolos em nuances de cinza-verde, chumbo-azul e verde-névoa, parecem sólidas de longe. Mas na verdade foram feitas como se gazes e sedas cobrissem um fundo, entrevisto ainda, de vermelho –e os limites de cada coisa se desfazem, se interrogam e vibram, umidamente.

    Imagens de colorir para adultos, acho eu, deveriam ser mais ou menos desse jeito.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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