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    Marcelo Coelho

    Nem tão burros assim

    27/05/2015 02h00

    O adolescente brasileiro é um débil mental. Tudo bem. Isso faz parte da vida; todos temos de passar por uma fase de estupidez.

    É mais ou menos este o pensamento de Eduardo Coutinho, em seu filme "Últimas Conversas". O documentarista é amigável ao expressar essa opinião, concordando com um de seus entrevistados.

    Que, aliás, é adolescente. O rapaz, de óculos grossos e sorriso luminoso, sempre foi excelente aluno, sofreu bullying na escola e não tem simpatia pela faixa etária a que pertence.

    Como sempre acontece nos documentários de Coutinho, os entrevistados se desarmam diante da câmera e se fazem amar, narrando as histórias que os fizeram serem como são.

    Só que aqui o diretor se sente pouco à vontade. O problema talvez esteja, como ele próprio diz, no fato de que os adolescentes não têm tanto o que contar. Seu passado é curto, sua biografia não tem vincos, não há como percorrer um terreno tão liso.

    Soma-se a isso uma dose, não digo de preconceito por parte de Coutinho, mas de incuriosidade.

    A garota mostra ao diretor a lista de suas músicas preferidas, tal como aparece na tela do celular.

    Eduardo Coutinho pega o aparelhinho, que se apaga em suas mãos. "Tudo desliga comigo", diz ele, e sua fala como que simboliza o frequente risco de esvaziamento, de malogro na conversa pretendida.

    Outra jovem também fala de música e mostra no telefone uma canção que gosta de cantar. As imagens parciais de seu rosto, filmado bem de perto, são lindas; ela canta com perfeição.

    Mas essa sequência de "Últimas Conversas" não se compara com o célebre momento de "Edifício Master", em que um morador solitário parece resumir toda a dor de sua vida e o amor que ainda guarda por si próprio ao cantar um sucesso de Frank Sinatra.

    Ainda assim, "Últimas Conversas" é forte o bastante para desmentir as próprias convicções do diretor.

    Não, os adolescentes não são débeis mentais. Certamente houve, como em qualquer outro documentário de Coutinho, uma seleção prévia das pessoas que seriam entrevistadas. A pequena amostra que surge no filme não tem, é claro, nenhum valor estatístico.

    Mas, em favor dos adolescentes entrevistados, pode-se dizer que não revelam nenhum preconceito ou tabu quanto à vida sexual. Número considerável deles afirma não acreditar em Deus.

    Uma jovem afrodescendente diz que jamais recorrerá ao sistema de cotas para entrar na faculdade -isso seria racista, afirma, e não há por que temer concorrência com quem quer que seja.

    Também impressiona, na história de quase todos, o fato de que o pai sumiu de cena logo cedo. Não é pouca coisa que esse sofrimento -assim como o relativo desamor que possam ter tido das próprias mães- seja encarado sem vitimização nem frivolidade por esses meninos e meninas.

    Choram bastante, mas sorriem mais ainda; sorriem e choram ao mesmo tempo. É uma juventude emocionalmente corajosa, que aposta em relacionamentos mais maduros do que os vividos por seus pais.

    O futuro escolar e profissional desses garotos inspira menos otimismo. Vários dos entrevistados escrevem poesia. Mas, quando se fala no Enem, nos sonhos de fazer faculdade gratuita, o quadro desanima.

    Uma jovem diz que vai mal em matemática. A razão? Seu professor é muito ruim, tem uma voz enrolada, não se entende o que ele diz durante a aula.

    Nessa justificativa, ressurge todo aquele espírito de autovitimização que parecia ausente enquanto os entrevistados falavam da vida familiar.

    Não é segredo que, em nossa época, e talvez em qualquer época da história, as pessoas tenham dificuldade de assumir a culpa pelos próprios fracassos. Não é que eu estude pouco, o problema é a voz do professor -e, de modo geral, "a escola".

    Curioso que não se tenha eleito o pai ausente ou a mãe atarefada como bode expiatório. O "sistema" é o culpado; mas, pelo menos, graças a essa fantasia, poupam-se as pessoas de carne e osso.

    Eduardo Coutinho sabia amá-las -e, se ele achava que "os adolescentes" são uma tragédia, cada um deles, em seu filme, defende-se com toda a dignidade que possui.

    Que Coutinho tenha morrido, tragicamente, pelas mãos de seu próprio filho, é um acontecimento que sequer admite comentário; registre-se apenas que os jovens de "Últimas Conversas" saem beneficiados por uma espécie de perdão.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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